21 dezembro 2007

triálogo

Quem é que tem ideias? - duvidou a Liliana - filosofar sobre o presépio?
Aquela coisinha que conhecemos - disse o António - então o que é o presépio?
A Liliana encosta-se e ri. Penteia o cabelo e ri,
É onde a nudez do mundo tem calor, eu acho que é evidente - graceja
Fábio, é isso? Ora bem Fábio, o que achas disto? - tentou o António
Fica desconfiado, coça ligeiramente a barba, mas adianta,
É o berço... o princípio - diz em voz arrastada
É tipo o nosso nascimento - acrescenta a Liliana
Mas o que é que nasceu primeiro? - provoca o António
Voltam a centrar-se naquela frase. Aquela onde Miguel Torga associa presépio a nudez e fala sobre o calor do mundo.
Talvez a família - resolve dizer a Liliana - no fundo, pode ser a família a dar um sentido ao mundo em si
Ainda com a mão no canto da orelha, o Fábio atira a palavra afectividade, mas baixo. Segura a caneta com a ponta virada para cima, cala-se, aponta qualquer coisa no papel. Fica concentrado talvez a tentar definir uma ideia mais precisa sobre o natal.
Parece que é verdade, que se perdem vinte e uma gramas quando morremos - disse a Liliana
Mas isso está provado, cientificamente? - pergunta o António
A questão é: como é que se passa do nascimento à morte - voltou a introduzir a Liliana
No fundo é uma questão de fé - ouve-se dizer
O António fica parado olhando para o pedaço de papel com a tal frase. Vira-se para o Fábio quando este decide dizer que a afectividade é importante para a construção humana.
Sim, não sei se já viram... - comenta o António - ainda se fazem presépios humanos aí pelo mundo fora
Desviam-se da frase do Torga e iniciam uma pequena conversa sobre um assunto da semana passada.
É, podia ser um presépio de animais - ri-se a Liliana

04 dezembro 2007

incipit

asas
apesar de a língua que depois falamos
ser diferente
ainda temos no início da frase
uma tão louca coisa a afirmar
mais do que a dizer
que é o que quisemos escrever:

paz à nossa alma
asas

26 outubro 2007

paredão: 2002


já começara a nítida madrugada
estivemos ali sentados no paredão
levando com os salpicos de sal nos pés
e dissemos descalça-me, pareceu por dentro

foi da areia que trouxemos coisas caladas
já que sob a pele tudo dizia
quase a voltar no tempo, se a isso levasse:
desvicia-me, dissemos enquanto descíamos as horas

e vimos uma solidão de buraco vazio
subindo no distante da noite, tão instante
como aquele jogo de língua a serpentear
os lábios de todos os irrepetíveis espaços
asas

12 outubro 2007

credo





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as
as
as
as

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as
as
as
as
as
as
o ódio aos livros começou na poderosa
fogueira
onde entre autor e leitor deixou de haver
silêncio

e foram precisos dois mil anos
para que os credos fossem hoje
as grandes máquinas,

onde ninguém já mais se inscreve
ou muito menos proscreve

asas

25 agosto 2007

transformações


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as
onde eu gostava de estar é onde dormes
aí bem dentro dos teus barulhos
e adormecer assim como um menino
tipo a imitar jesus.
asas

03 agosto 2007

verão

[cronómetro 0:00]
vinte minutos, pouco mais
do que vinte minutos,
são pessoas, muita gente passando
trazem decotes e cortes de cabelo
brincam ao verão
e têm cor.

vinte minutos, pouco mais
do que esta meia hora,
são passeios, um ruído de ferro
e mais de quinhentos telefones
tocando, pego no meu
é engano.

são apenas vinte, pouco antes
deste fim de tarde,
são quiosques de ouro olhando
p’a quem passa
quatro cães sinistros
e raparigas a mais.

[cronómetro: devia estar em veneza]
tenho vinte minutos, não mais,
é muito para esta
dor de cabeça
fazer de mim férias
encostar-me por fim à cadeira
adormecer de jornal fechado.

asas

02 agosto 2007

o filho único


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A mãe dera à luz. E sentia-se visivelmente feliz com o futuro. Certo dia, perguntou-lhe o filho: “Mãe, eu sou bonito?”, “Claro que sim”, respondeu-lhe a mãe com uma voz afiada. Passaram-se alguns dias e o filho continuava a pensar na pergunta que fizera. Diversas vezes dava conta de si sentado no sofá a lembrar-se do som da voz da mãe. Numa outra altura resolveu dizer-lhe: “Mãe, o Sr. Franz Kafka teve onze filhos e nem todos saíram bonitos.”, e tinha algum ar de tristeza nos lábios quando terminou de falar. A mãe olhou para ele com muita atenção e disse como quando se vai dizer uma coisa apenas uma vez: “Mas tu és o filho mais bonito que existe.”. Voltaram-se a passar mais alguns dias e durante esse tempo o filho teve sonhos onde ouvia tiros de vidro e um eco longínquo como que saindo de um búzio muito gigante. Enquanto via a mãe deitada na cama imaginava como teria sido viver dentro dela. Enquanto via a mãe a falar com uma amiga imaginava como a amiga pensaria na sua mãe com um filho dentro dela. Enquanto via a mãe de volta de um livro imaginava como seria a sua vida se nunca tivesse tido o filho. Enquanto via a mãe doente imaginava o que teria acontecido se a mãe não fosse medicada ou se a mãe tivesse escolhido ser outra coisa qualquer. Por isso, voltou a dizer-lhe: “Mãe, eu sou bonito? Desculpa perguntar outra vez.”, “Não há dúvida que és o filho mais bonito”, disse-lhe ela com ar de felicidade momentânea. Mas o filho voltava a observar a mãe enquanto ela vestia e despia o avental, enquanto entrava e saía da casa, enquanto se perfumava e enquanto ria e chorava. Depois, num outro dia, perguntou-lhe “Eu sou o filho ou o rapaz mais bonito?” e a mãe respondeu-lhe “Todos os rapazes são bonitos”. Então o filho decidiu dedicar-se ao mergulho para não pensar mais em coisas deste género. Enquanto mergulhava ouvia sempre outras vozes. Enquanto estava debaixo do mar imaginava estar debaixo da barriga da mãe. Enquanto mergulhava sentia que não podia respirar, uma vez que não podia haver ar onde havia vida a nascer.
asas

26 julho 2007

gabriel

quando eu tiver sessenta anos
vou ter achas incolores
descendo pelo rosto,
e uns dedos azuis
cuja longevidade
estará além dos livros
e da fé.
vou deixar de marcar encontro
com os poetas
e de escrever mais do que uma carta
à mulher que um dia já morreu.
vou ser pai e avô
a velha ama da literatura
que macia lhe limpa o pó,
perscrutando a mania
adolescente dos meus filhos
e das suas namoradas.

asas

13 julho 2007

a comuna


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Somos a comuna, o grupo restrito dos que sorvem as palavras como jovens cabritos à espera do banquete. Somos a escondida tribo da cidade de chuva, das ruelas enfeitadas de Carnaval com nomes de santos. Somos os vestígios da última prática escritural, os que metem as normas e as línguas na grande taça de vinho. Somos pares, temos tempo para por agora sermos pares. Pagámos e quisemos pagar por isso. Somos o castigo de escrever, a punição que rola pelo nosso corpo acima. E somos um só corpo na palavra do pão e do sangue, o poema que virou hóstia, a fábrica que virou janela sobre a criação. Temos agora um templo para orar, só para descalçar por dentro o que de divino nos tocou, para estripar o eco num vasto nada que nos comeu a alma. Somos a grande apoteose, a aguarela das profissões e dos ofícios que carregamos em cima, a pedra que temos de levar às costas até ao chão voltarmos. E somos ainda a moderníssima esperança da dor, a criança fugindo do escuro ao unir os estranhos laços de uma nova era. Somos o culto, a capa da revista, a primeira montra dos quiosques, a histeria repentina dos gatos, o rumor da mão sobre o invencível canto do real. E teremos tempo, teremos tempo para celebrar a reunião da esguia noite. Tão cheia de promessa. Tão concreta de alimento, tão molhada de doce vida e diferente. Somos o movimento do lânguido suor inteiro, trocando manias e instruções, pequenas migalhas do universal texto que fizemos. E somos cada uma das índias que ainda não vimos. Dizemos por fim: somos a mesa que branca se compõe em quase silêncio, a entreaberta porta de onde chegam os húmidos passos, a grande decisão da existência. Seremos para sempre o momento único, o futuro que agora é, a experiência temporária de todos os passados.
asas

03 julho 2007

foram passando as tardes


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Às quatro da tarde estivemos a olhar para o relógio, eu já cansado, tu já mais ansiosa, mas era normal. Às quatro e um quarto da tarde trocámos cartas e dissemos que as orquídeas estavam ainda mais brancas. Visitámos aquele santuário de flores às quatro e meia . E não havia século dezanove que nos pudesse contrariar as entranhas. Às cinco menos um quarto começámos a rasgar duas cartas e lágrimas ficariam para sempre gravadas no banco onde parámos. Tu pousaste os ombros sobre o meu colo e eu disse-te que estava cansado. Às cinco da tarde o resfriar do entardecer dava de si. Era quase Dezembro. Passámos seis minutos virados de frente para o jardim aberto de branco e queríamos ter falado. Mas o horizonte ia descendo escuro numas evanescentes rochas. Às cinco e meia da tarde havíamos secado ambos os cantos da boca. Tínhamos estado em silêncio, tu já meia adormecida, eu quase nervoso. E às cinco menos um quarto desta tarde ainda me torturava um bruxedo qualquer. Enroscámos os dedos num fechado nó e soubemos ver que com a noite apagámos as mãos. Às seis da tarde estivemos a olhar para uma das mais compridas vagas do infinito mar.
asas

26 junho 2007

numa gelada noite de junho rumo à sibéria

Meia garrafa de vodka pela garganta abaixo. No outro canto da mesa, alguém calcula o peso dessa garrafa, o hábito ao qual tenta fugir a sete pés. Prefere conhaque. Apesar da azia, sempre é um pedaço mais doce. De frente para o jardim povoado de brinquedos, comemos restos de bolos, coisas salgadas e falamos do número sete da selecção portuguesa. Chegam agora os vinhos especiais para molhar os queijos e mais uns copos de água para se ir aguentando o ardor das brancas. É noite, faz frio. Estamos parados debaixo de uma grande varanda com entrada para a aldeia. Devia ser noite de festa, mas há pouco ânimo para festa, já não temos posição nas cadeiras. A festa está ali na fronteira com a embriaguez. É secreta, tem o cheiro do cotão dos casacos velhos, e cada um imagina dançar o que lhe apetece. Vou dizer-te uma coisa: nenhum diálogo é engraçado se feito a partir das teses das gerações. E digo-te ainda agora outra coisa: tenho mais vontade de fazer de conta que participo nas teses das gerações porque tenho medo de ficar de fora. Não consigo perceber por que razão insistimos em falar, digo-te isto a ti. Temos tão pouco a aprender, sempre mais concentrados na explicação das nossas próprias preocupações. Porque pode vir todo o conhaque que tu quiseres, mas depois já não teremos fantasia que chegue para suportar a realidade.
asas

08 junho 2007

é inútil voltar atrás


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havia um homem que dizia
isto é o máximo que
eu consigo odiar

estava cansado de
virar a frase ao contrário
já muito moído de

quase sempre dizer
isto é o mínimo que
eu preciso amar

asas

01 junho 2007

O vendedor de carne


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Desceu a rua quase apressado. Andava a fazer as contas à vida desde a semana passada. Já tinham passado quatro dias desde que visitara a nova moradia. Nos últimos dois não pregou olho. Teve de duplicar a dose de xanax a ver se conseguia ter algum sossego; “é que no dia seguinte é preciso picar o boi”, diz-me arqueando por segundos as sobrancelhas, mas “é um stress, estou parido”, diz em seguida abanando a cabeça com um leve esticão nos ombros. Enquanto descia a rua em direcção à casa da sogra treme-lhe o telefone. Atende com ar de preocupado dizendo que eram já quase oito horas e que o tasco estava fechado. Largando o telefone no bolso das calças vira-se para mim dizendo “já viste estes gajos? Qualquer hora para eles é normal” e digo-lhe eu meio entredentes “pois, é chato”, “é assim, mandam vir meias doses de bovino e eu já lhe disse três vezes hoje que amanhã o fornecedor vai lá com um inteiro. É mais do que o gajo queria, mas ao menos é fresco!”, concluiu já com os olhos fechados e a acelerar o passo. Ele estava praticamente a chegar ao fundo da rua, vai buscar o filho à avó e espera que desta vez o rapaz não faça teima para passar no parque à ida para casa. Durante os últimos dias não anda com paciência nenhuma para o filho. Tem de pensar nas mudanças, saber onde poderá ir buscar uns caixotes de papelão, talvez alugar um espaço para meter lá a tralha. E tudo isto em simultâneo com muito trabalho numa nova empresa. A venda de carne não lhe é propriamente estranha, apesar de já ter feito outras coisas na vida. Do seu currículo profissional constam três grandes campos de actividade: paraquedismo, depois comércio ambulante de bugigangas e finalmente o negócio das carnes. Do primeiro resultou um problema nos ouvidos, zumbidos aos molhes de tempos a tempos. O segundo originou-lhe uma perda de dinheiro razoável, tendo em conta o que investiu a par com um sócio na compra de materiais e tintas para fazer a tal quinquilharia (basicamente bolas de ping-pong, lãs, tecidos e seixos de praia). Do comércio das carnes fica-lhe a dor na coluna causada por todas as horas a carregar porcos e vacas do camião para os talhos, e muitas vezes às cinco, seis ou sete da manhã. Mas foi na área das carnes que realmente atacou, pelo menos já não parece poder ou querer fazer algo diferente. Passou por quatro empresas, todas da área norte do país, e em duas delas teve já a experiência de gerir um sector particular de entregas, mas é um trabalho que exige olho para as comissões e “para vender é preciso saber levar uma pessoa”, lembro-me eu uma vez de o ouvir dizer a alguém ao telefone. Porém, logo agora que o que mais precisava era de tranquilidade para pensar na moradia nova, andava às aranhas com um patrão novo que segundo me diz “berra forte e feio e está sempre todo transpirado”. Ele também tem tendência para falar alto, deve ser um hábito que adquiriu com o tipo de trabalho que tem. Faz os seus negócios no carro, no meio da fúria do trânsito, falando para um telemóvel pousado no tablier de onde frequentemente é possível ouvir-se “não me venhas com merdas” e foda-se ou caralho no meio de “o jarrete de novilho está na mesma em promoção, queres que diga para ir para o Ramiro?” ou “manda vir pernil outra vez!” Por alguma razão a mim me parece que esta combinação de palavras funciona na perfeição. Sorrio abertamente ao sentir o modo como cada uma delas é dita sem qualquer tipo de cerco, são como tiros que pontuam o que é estritamente preciso dizer, e sobem-me pelo corpo como pedras. A crueza da palavra carne cruza-se com palavras que não podem ser outras senão aquelas e deve ser por isso que nem toda a gente conseguiria trabalhar neste ramo. Em todo o caso desculpa-se de vez em quando, brincando com isso, dizendo que nem sempre os clientes falam assim com ele, “é que eles não são universitários, achas?”, e admira-se olhando para mim com aquela expressão de suspeita. Quanto a mim, meio a reboque, lá disse que isso não era bem assim, que todas as palavras fazem parte de um código sócio-discursivo específico que torna a interacção entre as pessoas entendível e todas têm um significado necessário. E ao terminar de dizer isto tomava logo consciência que mais universitário não podia ser. Quase me apetecia bater na boca. Já à porta da sogra ele viu o filho à sua espera. Como é habitual quis correr um pedaço no parque e dar umas corridas com os miúdos que lá andavam. Com as mãos nos bolsos, ia-se irritando com aqueles dez minutos que quase sempre era obrigado a ficar ali a olhar para o filho a brincar. “Ele na escola já não brincou?”, pergunta-me com voz grossa, diria eu que devia ser do catarro de um ex-fumador. Olhava para o relógio e vira-se para a sogra interrogando-a sobre a inquietude do neto, sobre esta coisa de agora os miúdos brincarem quando são horas do jantar e de mais uma vez o casaco do puto ter ficado esquecido no bengaleiro da casa dos avós. Além disso a mulher estava atrasada, para variar, e não lhe apetecia minimamente dar qualquer tipo de adianto ao jantar. Ia tomar banho, abrir uma cervejinha e reordenar a lenha na despensa ou então passar o pano na mota. No próximo fim-de-semana ia para Coimbra, à concentração, e ainda tinha tanto para fazer. Só de se lembrar suspirava. Arregaçando as mangas do pólo cor-de-laranja diz-me “já viste isto? Depois de amanhã vou para Coimbra de mota e o meu puto diz para não ir, que tem medo”, eu acenei com a cabeça sem sentir praticamente nada, “diz que viu um acidente na televisão e que agora o pai também vai ter um”, continuou ainda. Depois de um muito breve silêncio acabo por dizer “a velocidade pode ser perigosa”, mas não tive grande certeza no que disse e ele retoma afirmando que chega a Coimbra em meia hora, sempre a abrir, e que desta vez tem mesmo de ir à concentração dos Motards porque até os Xutos vão lá tocar. É esta associação entre o que precisa fazer e o sentido útil que retira do que faz que mais lhe admiro. Tenho a sensação que poucos sabemos fazer isto assim de um modo tão direito, plano, colocando um tom de seriedade em quase tudo e onde as acções autonomamente se priorizam, como que fazendo parte de uma pirâmide bem rectangular. Enquanto o ouvia dava conta que pensava no modo como o que se quer fazer nem sempre se pode fazer e também na diferença que me parece existir entre o sentido do querer e o sentido do poder. Devo ter falado sem perceber e disse “sabes que para uma criança é complicado” e mais uma vez deu-me vontade de bater na boca. Quando não se encontra nada de jeito para dizer, dizemos quase sempre que é complicado isto e aquilo ou que é preciso dar tempo ao tempo, como se o tempo fosse uma totalidade, uma camada à qual se pode sobrepor outra. Pus apenas uma linha recta nos lábios querendo dar a parecer um sorriso liso de paciência. Os dez minutos passaram e começou a chamar o filho. A sogra estava já dentro de casa e só entre nós podia haver conversa. As luzes da rua acenderam-se e o anoitecer estava com uma estranha névoa salgada, apesar de estarmos num lugar muito distante do mar. “Mas e lá para Agosto? Que fazes?”, resolvi dizer. Descendo um pequeno passeio que havia na rua diz sem para mim olhar que vai para o sul de Espanha e que é melhor o patrão não se por com cenas porque são férias. Ele gosta muito do sul de Espanha, perguntei-lhe se seria por encontrar lá muitos portugueses. Responde-me que são as praias. Porque as férias são sofá e praia. E eu mais uma vez deixo-me seduzir por este sentido de exactidão, esta dura definição dos objectos de prazer, parecendo roçar a pureza, a perícia que é preciso ter para planificar o futuro. A viagem para Espanha irá certamente correr bem uma vez que já tem o carro benzido em Fátima. Eu inclinei o pescoço para o lado direito como que dizendo ainda bem e o puto entretanto chega do parque em frente. Quer fazer mais não sei quê ali ao lado e o pai diz-lhe com aquela espécie de masculinidade irrepreensível que são horas de jantar e que domingo há mais na casa dos avós. Se eu pensar em Portugal penso em domingos gordos e em travessas de carne. Ele começa a vestir o casaco ao miúdo dizendo-me que neste domingo vai estar a ver o concurso da miss t-shirt molhada e pergunta-me se eu também vou de fim-de-semana. O puto começa a correr atrás de um pombo muito pequeno que por ali passa. Fiquei sem responder. Mas em silêncio eu começava mas é a pensar no cruzamento dos domingos com a carne. Em Portugal há talvez carne a mais. Mas este lado carnívoro dá-nos um sentimento de controlo, de possessão, de sentido prático da vida. E o domingo é o festejo das carnes vivas comendo as mortas, são as famílias à volta de uma mesa, sessões domésticas de debate político, portugueses tirando partido de uma parte, querendo firmar uma ideia, armando valores e opiniões. Os portugueses gostam bastante de palavras soltas, das palavras todas, e sobretudo de dizê-las nem que sejam porcas. Será isto uma identidade?, questionei olhando para baixo. Subindo a rua levantou-me a mão em tom de adeus dizendo que tinha um canal à borla da tv cabo e que hoje ia ver um filme que ainda andava no cinema. Eu fiquei com a impressão de não saber muito bem o que fazer nesse dia.
asas

22 maio 2007

do meu futuro eu dizia que sim



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as

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as

as

as

no alto de uma janela
temos um sussurro que
pousa no cavalete da noite

um corpo que se debruça
e uma questão que roxa
ou viva se perscruta

no arrasto poluído
do mar muitas vezes
solenemente acudida

asas

17 maio 2007

Acre


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as
as

as
a palavra acre
podia ilustrar o sublime
mas diríamos agonia ou talvez
antes dor física,

porque não sabemos ao certo
o que despir
que carta escrever
ou que selo colar

diríamos que
a palavra acre
acolhe melhor a ilha
onde o escritor se priva

asas
(Ângelo de Sousa, "desenhos em papel")

03 maio 2007

Ódios

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A praga, é isso que tu és. Tenho de dizer praga muito devagar, tal e qual como devagar chamas as coisas pelos nomes. A praga, sim, a grande praga, a maior pandemia de sempre, a pasta invisível que paira no ar infectando as tribunas, as salas, as escadas e os móveis. A grande chaga, mais, o ninho de besouros vermelhos que se comem uns aos outros e que na sobremesa enchem as barrigas de sangue. Porque multiplicas, porque tomaste o corpo de Cristo e agora julgas que és Sísifo, que enganaste a morte e as guerras. Porque és o lastro de óleo das baleias, porque és demasiado loira para uma portuguesa. Não há, não há paciência para ver-te aos hellos good mornings oh yes’s pelos corredores fora. Porque vomitas em excesso a educação londrina e a transformas no pão dos rapazes pobres deste país. És a praga sim, toda envenenada de ti até ao talo, és Messias de uma boa nada boa que pensas ser grande. Sim, grande, tão grande como o tamanho da lagarta-mãe, rainha de todas as fêmeas, que lhes toma o coração e os esfíncteres. Tão chaga que és, sozinha produzes tu uma espécie para que assim, maniatada, possa tornar-se na tua infinita filha.
asas

26 abril 2007

Travessa cento e um

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Não devíamos estar a ouvir esta música, pelo menos agora, já menos enrolando as pernas (eu) e já menos com tamanha simpatia (tu). Devíamos estar a ouvir qualquer coisa barroca, sim, devíamos estar a tentar decifrar a beleza barroca e a acreditar nos enigmas dos autores e dos pintores que gostam do goya. Já não cruzando tanto as pernas (eu) e já com o olhar menos focado (tu) podia ter-nos dado para passar os dedos no piano. Acho que me apeteceu pensar que gostava de te ver com as mãos no piano, apesar da luz da tarde não ser a mais ideal, apesar da casa não ser a minha mas a tua. O que devíamos estar agora a fazer era a cozinhar uma ceia e a imaginar se isso resultaria num texto dramático. Não saberíamos muito bem o que dizer nas falas (nas minhas) e não saberíamos ao certo se seria necessário haver falas (para ti). Por isso devíamos estar só a cozinhar e a dramatizar quase espontaneamente o cheiro a sair das panelas, a cor dos pratos a por sobre a mesa, a garrafa de vinho que devíamos abrir. Depois, como num flashback, dizíamos que a origem rural dos familiares (dos meus) é mesmo muito fundamental para interpelar certos e determinados lugares da escrita, mas que é ainda mais essencial viajar para a Europa e para o Sul e trazer daí outros espaços para os textos (para os teus). E porque precisamos de lugares devíamos estar agora num daqueles que com o tempo passaram a freguesias e onde os amigos (os teus) deixaram de ser padres para casar e onde há casas agora novas para passar os fins-de-semana (os meus). Nesses lugares não devia ser possível ouvir-se praticamente nada, só o barulho das recordações e dos fungos que com cisma (eu e tu) já quisemos tirar da pele por algum motivo. Onde há um mínimo de silêncio há também um mínimo de excesso e um mínimo de desejo que potencia tudo. Devíamos procurar dar uma espécie de potência a tudo, não ter vergonha de anteontem e gostarmos de viver a sós. Porque onde há literatura há sepulcro de qualquer coisa que precisa de ser ressuscitada, porque onde há um mínimo de literatura há avidez jovem do saber (para mim) e a celebração curiosa dos livros (para ti). Não devíamos apenas ter falado com silêncio. Não devíamos apenas ter feito dos nossos trabalhos o contrário do romance de Isolda porque o que já lá vai lá vai. Não devíamos ainda apenas estar a imaginar a translação dos corpos (do meu no teu ou o inverso) porque é ainda cedo para imaginar estas coisas. O que devíamos estar a dizer é que há um qualquer sofrimento nos olhos carregados (nos teus) que abre uma brecha de gozo na ironia infantil dos meus. Estive quase para te pedir uma sobremesa e à espera que não fosse preciso mencionar a fotografia da hannah viligger que de barroco não tem nada, é só talvez produto avant-garde, com pouco de místico. Mas já desenrolando as pernas (eu) devíamos não ter dado tanta atenção aos estudos da razão e da desrazão ou às temporadas em Londres a investigar a literacia no meio dos arquivos e de onde se ficou a saber que isso é pouco conhecido (tu). Devíamos com quase toda a certeza não estar a ouvir esta música, pelo menos agora, porque lá podíamos ter lido um verso do hölderlin com a melodia da voz (tu) e termos ficado a pensar na agradável fantasia da sua loucura (eu). Em pé devíamos ter sorrido com menos embaraço.
asas

20 abril 2007

O Corcunda e a Seringa

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A tua face é picotada, estou a vê-la agora mesmo ao lado da toalha de plástico sobre a mesa: tínhamos acabado de ir às uvas. Aos ombros o gigo curvou-te as costas, muitos cachos para trazer para cima, alguns debicados em cima da mesa, outros já podres. Quase ninguém gostava de separar as uvas boas das uvas podres, imaginávamos que dessem sempre bom vinho, daquele que se oferece aos primos e aos netos. Custava subir e descer a terra batida, mas isso fazias tu quase sempre com os cabelos sobre as arcadas dos olhos, ajudavam-te o silêncio, aquela tua concentração de jovem adulto viciado. Talvez por isso não falasses muito. Estarias se calhar pedrado, ressacando algum segredo, terias telefonado às escondidas dos pais para lisboa a saber onde andavam os amigos. Recordo-me de ti adolescente, abanando-se ao vento por causa dos teus dois metros de altura. Do quarto mais pequeno da casa, de onde se podia espreitar pelo vidro partido da porta, estavas tu mais as cassetes, estarias tu e o que não terias ali, tinhas saudades de uma boa cerveja ao fim da tarde ou de um charro pela noite adentro. Talvez por isso não falasses muito. Acreditávamos depois que era preciso rezar de vez em quando. Aos domingos, pelas oito, cobríamos a ponta do nariz com frio e fazíamos de conta que dormíamos para não nos levantarmos para a missa. Custava saltar para a igreja, nunca vimos nisso grande gozo. Sabia muito melhor não fazer nada, só uns desenhos talvez sobre o banco grande de madeira. Dizias assim para dentro “gostava de ir-me embora, gostava de ser mais gordo” e nós percebíamos isso a sair entre a linha da tua quase sempre fechada boca. O teu lábio de cima era como um fio de um cabelo, sopravas constantemente para um dos lados da repa que te incomodava a testa e de vez em quando puxavas a calças para cima. Eras desajeitado, mas isso não devia ter-te matado. Escolheste uma seringa a meio da madrugada para por fim ao desarranjo. Se tivesses ido ao psiquiatra dir-te-ia ele assim “o senhor sofre de peso do desarranjo, mas tem cura, não se preocupe.” Mas não foste ao psiquiatra, já saberias talvez que eras um daqueles jovens acorrentados à parede que assim ficavam para desgosto da família. E tu lias muito, sabias que era assim que antes os loucos sofriam. Quiseste outra coisa, meter a solidão toda numa mensagem de telemóvel nunca enviada, sufocar apertando o pescoço a fazer de conta, foste até à gaveta da cozinha à procura de um saco para meteres lá a cabeça, pousaste os braços sobre o sofá e misturaste o veneno à luz de um candeeiro público que te entrava pela janela. Melhor este crepúsculo, dirias tu enquanto enfurecias as veias. Nada das uvas te fez parar, nem mesmo os desenhos que fizemos sobre o banco ou as tardes de julho malhando o milho. Pensarias que o prazer havia feito as malas. Não; deves ter pensado que a frustração não é afinal uma coisa tão objectiva como os clínicos dizem. Viste uma pirâmide desfazer-se como uma miragem que se esvanece, viste irmãos de mãos dadas sobre uma barragem de correntes grossas, viste muito provavelmente toda a desrazão desta cidade onde vivias escorrendo-te por entre os dedos, como areia, como folhas picadas de um louro sem cheiro. Sentaste-te então com a noite alaranjada do candeeiro que te iluminava a sala. Sopraste para a colher que te cozeu o veneno e contaste os dias que te fizeram chegar até ali, foram alguns até, pensaste. Tiveste uma dor a subir-te pelo braço, trincavas o fino lábio agora seco e não precisaste de afastar os cabelos que também agora eram já curtos. Estou feio, dizias. Ainda não sou gordo, mas continuo feio. Meteste então tudo para dentro do sangue, melhor assim, melhor contaminar o sangue que nunca me fez saltar, que jamais conseguiu fazer-me falar e sorrir. Tinhas uma cassete dentro do leitor, parada, esperaste que a música terminasse. Lembraste-te da guitarra guardada no armário, no meio das camisolas e dos casacos. Um dia havias de ser uma estrela, digo-te eu. Lembraste-te de um passeio ao porto, junto ao douro, tinhas dito que no porto grandes estrelas surgiam de repente. Mas o porto era o norte e no norte fazia frio e nem sempre as uvas que vínhamos cá buscar eram boas. No norte estavas fora, do norte levavas muito pouco para casa. Os teus pais diziam isso várias vezes. Melhor então acabar com esta crueldade toda do norte e acabares então no meio dos gangs do sul, dos colegas de passe e de tudo isso. Não haveria volta a dar. Já tinhas carta de condução e tudo. Fazias tu a tua vida, penso eu. Imagino assim que te tivesses lembrado de nós com frio, muito aliás. O veneno que tomaste foi para te aquecer a frágil carcaça que ainda vagueava em ti. E quando morreste não soubemos explicar porque razão terias tu morrido, preferimos dizer uns aos outros que estavas doente. Mas não era verdade, não era. Não participaste no que viveste, haverias percebido desde muito cedo que tinhas já construído um vício de vida e que isso era de tua autoria. Daí sim a doença, mas não doença doente. Estiveste para além do que é da ordem do perceptível, morreste e pronto. Tu estarias pronto para isso. E quiseste fazer de conta que até então vivias, nem que fosse por entre os gigos de uvas que em silêncio trouxeste para cima, para a nossa casa. Deixaste mas é pouco testemunho e é por isso que as pessoas choram por dentro quando te lembram. És demasiado jovem, disse eu, quando espetaste a seringa.
asas

13 abril 2007

(a gata)

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a gata mia
está muito preocupada
viu alguma coisa

que eu não vi

tem os olhos bem abertos
de luzes pretas lá dentro
e fareja nos cantos

coisa que eu não vi

estica-se em pé
até nervosa se põe
e simétrica pára

em algo que eu não vi

resolve escutar
ir para longe e parar
fazer de conta que já sabe

tudo aquilo que eu não vi

dá três longos passos
e vagarosos também
é capaz de se sentar

e espera ver o que não viu.

asas
(Imagem "Experiência do lugar", por Helena Almeida)

10 abril 2007

(despedidas)

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esta semana vais fazer as malas
e apanhar o avião,

e nas despedidas

não dirás adeus

(porquê?)

já fizeste os cálculos todos:
são realmente aborrecidas

e depois,
vai ser viagem rápida
nada de ir trabalhar para fora

(ainda bem)

é que há quem parta para áfrica
e não deixe sequer
um bilhete para os amantes,

para por no guarda-jóias ou assim

(sempre ajuda)

porque nós asasasasaasque ficamos
iremos ver as notícias ao café,

só para deixar passar as tardes

pois cansámo-nos de esperar
e de vestir roupa nova
para quase ninguém ver.

asas

09 abril 2007

granitos


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estivemos na casa ontem
(mas)
pela primeira vez, à procura

talvez das coisas que mudaram
ou dos trilhos no meio da erva rasteira,
por baixo das pedras

“ainda há sanfonas a sair do granito”,
veio-me dizer

e era verdade,
tal e qual as manhãs inundadas de frio
e de pássaros pequenos,

fugindo do vale lá longe
“meio queimado”, lamentei,
e de umas quantas videiras secas
que nem pela fresca
eram verdes.

asas

06 abril 2007

(juntam-se as nuvens)

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se esta nuvem que eu vejo
fosse um anjo

um super-homem anjo

ou então uma libelinha
a mais elegante flauta

pouco clara, estranha até

no seu eco
eu havia de acreditar.

as

04 abril 2007

(poemas)


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ontem sonhei com os meus poemas –
eram penas –

rodavam, luziam
planavam no ar

bem no sítio de uma fonte,

como cântaros à pinha
em soluços

mas eram poucos, sempre poucos.

asas

02 abril 2007

(xxx)

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desenterra-me agoraasasasasasagora mesmo

não te assustes
as minhas mãos ainda são de carne,
podem ainda tocar-te

puxar-te,

és a etérea pérola do meu desgaste,
anda lá, não vês como suplico

como esgadanho a terra para te tocar?
vou beijar-te inteiraasasasasase desta vez
não irei para o estrangeiro,

estou farto de sê-lo, tu sabes

de carregar comigo este casaco sem bolso
esta lápide sem enterro
ou este bosque sem bruxas,

vem asasasasasanão esperes,

separa cada grão bem devagarinho
pede-me para casar quando amanhecer
sim, junto aos amarelos pássarosasasasasasaestou aqui,

já tenho uma casa para vivermos.

asas

30 março 2007

(licantropias)

asas
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asas
que engraçado posso ser a caçar-te
há sempre quem passe e me veja,
talvez nalgum dia possa eu fazer amor à beira mar,
à noite,

é que ainda não fiz, segredava-me.

disseste-me que eu nunca vou saber
o que é ter uma árvore plantada na boca,
largando sementes
nascendo sem rugas
sempre fiel à selvajaria do desejo
e da emboscada, voltou a murmurar.

pena mais tarde teres escrito tudo ao contrário,
sem paixão de beira praia
ou outras obsessões.

sinto cuidado contigo, tens gula a mais.

asas

29 março 2007

(espectros)


asas
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na cama
fica um buraco com riscas
depois de nos levantarmos. pouco dizemos,

e à entrada do sol franzimos a testa. já devíamos ter acordado,
penso.

asas

26 março 2007

(escalenos)

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sou gelo pouco gelado e muito pouco tenho para te aquecer,
acredita nisto. tivemos as nossas alturas,

(nas piores soubemos sempre o que devia ser aquecido?)

e já com os jogos todos na gaveta
estamos grandes,

sem termos crescido quase nada.

fizemos as visitas ao médico, corremos urgências
e lemos histórias na meia lua das horas,
descemos as curvas por entre os ossos
e pingámos as mesas com lágrimas

cuspo
pedaços de unhas partidas
pestanas
e restos de garganta
envelhecida.

asa

24 março 2007

novo método. práticas de exploração

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Ele via o mar por entre dois prédios em construção. Gruas e patas peludas de bichos cobriam as paredes dos dois prédios. Interrogava-se sobre a razão de tais construções apressadas: quase sem tempo para medir o tempo que levavam a ser construídas. Interrogava-se ainda depois sobre a diferença entre o tempo das coisas físicas e o tempo das coisas pensadas, pois em princípio as primeiras não pensam, são resultado de se pensar sobre elas. Correu as janelas para um dos lados e um cão de pêlo manchado, pequeno, corria por entre duas portas abertas. Um gato esconde-se. Subiu o volume do rádio: a terra tinha tremido algures no mundo e muito provavelmente teria assustado centenas ou milhares de pessoas. Estamos todos zangados uns com os outros. Lembrou-se que por volta dos sete anos, perto do depósito do lixo, apontou com os amigos para meia dúzia de estrelas que o céu de verão trazia assim à tona e até à meia noite dessa noite ficou a perguntar-se se algum dia chegaria às estrelas numa volta de bicicleta. Começou aí a exploração de si. De tudo que saberia que era impossível. De querer fé e de saber que isso era impossível de ter. Quis voltar-se para o mar, mas aterrorizado com a ideia de que um dia pudesse ser engolido pelas ondas. Talvez por isso não se aproxime muito da costa. Vai fazendo contemplações à distância, ponderando cada um dos passos, cada um dos seus afastamentos. Mas gosta da água. É capaz de tomar três banhos num só dia. Existem orifícios que gosta que estejam bem limpos, tem a ilusão de uma ossada de vidro, limada e bem parecida, a ideia de ser bem recebido pelas raízes. As temperaturas sobem, ainda cantam as buzinas e as filas de pessoas com sacos nas mãos. Há dias achou que havia descoberto um novo método implacável, novíssimo, para compor textos. Qualquer coisa como alinhar o texto sempre a partir de dois ou múltiplos autores. Soube depois que isso era um intratexto. Gostou de saber isso e da palavra também. Por isso, a ideia que teve baseava-se nas ideias todas que já lhe tinham passado, fisicamente falando e criativamente pensando. “Não posso andar mais com estes sapatos” “a sério?” “ahahahahahahah!”, “achas? Aquilo é que é!” “disseste que tinhas ido lá” “vais deixar cair isso caramba!” “sim, sim” “olha, não tenho este” “é melhor não, é caro” “está gente, não vês? espera!” “vai levantar dinheiro” “posso passar para o outro lado?” “uma gaja cansa-se, meu deus”. Reflectiu um bocado nisto durante quatro cigarros. À volta do fumo faz uma síntese e o resultado é nada. Olha outra vez para o canto do mar. Está sem ondas. Fecha as janelas porque começa a entrar um vento frio. Duvida se o que ouve são mesmo os pássaros ou se é algum efeito sonoro, moderno, do trânsito ou assim. Mas são mesmo os pássaros. Depois concluiu: desde a ideia de que chegaria às estrelas numa volta de bicicleta até aos quatro cigarros de agora, ele não fez mais nada que não seja explorar-se a si mesmo. Como lhe poderiam pedir isso?, perguntou-se enquanto lavava os dentes. Ainda colam as pontas dos dedos, mesmo depois de lavadas. Deve ser um efeito secundário da exploração, a espinha nervosa do questionamento encurralada como um animal dentro de um círculo de fogo. Mas pouco lhe interessava isso. Se tivesse de cumprimentar alguém com um aperto de mão teria o cuidado de não apertar muito talvez. “O que é que vamos matar a seguir em ti”, saiu de casa dizendo.
asas

23 março 2007

a minha mãe é uma monstra

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Com um queixo do tamanho de uma rocha de beira-mar, com sítios onde as pulgas se espetam e escavam a pele, a minha mãe é do tamanho do seu rosto que é monstra. Horrível. Digna de posar numa daquelas feiras de anormais. Tenho medo. Julguei que ela pudesse ser um pouco mais bonita. Servi-lhe uma refeição numa daquelas tigelas de louça gasta para o escuro, sentado num banco de pinho velho. Eu era tão pequeno, ficava com a cabeça pela altura da mesa e por isso precisava de me esticar muito para levar a colher àquela boca meia morta. Depois as mãos. Outras partes do monstro a prenderem-me o olhar, mas o coração também que de tanto bater quase pulava cá para fora. Fui deitá-la a seguir, sentindo as elevações da pele nos seus dedos engarrafados, nos polegares rugosos e pesados. Eu pensava que a minha mãe pudesse ser um pouco mais bonita. Estava um cair de noite azulado, do céu caíam gotas como que de um petróleo pastoso que ia soldando o telhado frágil da casa. Uma cozinha apenas. Uma casa, uma divisão. Uma cozinha que em termos de dimensão se confundia com o tamanho da mesa, obliquamente encostada à parede de pedra preta. Uma fogueira, num canto mais iluminado, e um balcão encostado na outra parede com restos de uma torneira sozinha e uns cacos de plástico com migas de bolachas dentro. A outra parede era a porta, mas não a víamos, embora soubéssemos que era ali que a porta estava. Mas deitá-la no canto que sobrava na cozinha não foi fácil.
asas

22 março 2007

detalhe e frigidez


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Quem não dorme é refém dos barulhos, do ruído que estala dentro. Quem não dorme faz amor com o cosmos, porque é obrigado. Há todo um sistema de vestes compridas que circunda quem não dorme e à mão de contemplar: são os números vermelhos das horas no despertador, os lençóis enrolados e que as mãos arrumam, o ressonar longínquo da vizinha ou do vizinho, as persianas baixas mas a deixarem pequenas brechas para espreitar. Se não se dorme à noite então contempla-se tudo, juntando os pontinhos pretos que aparecem aos olhos fechados como viagem de astronauta. É engraçado como não adormecendo chega um universo apressado a quem está acordado. Desejar dormir é mais do que querer dar descanso ao cérebro. As sinapses continuam todas lá, mesmo quando nos esticamos. Sucedem portanto coisas inimagináveis a quem dorme. São as partes do corpo que se estendem como as antenas dos carros, as palpitações nas pontas dos dedos e das pestanas, o virar talvez violento de costas e barriga. Oníricas: é a primeira palavra no plural que nos vem à cabeça ao pensar em quem dorme. Diz-se que “quem dorme, opera e colabora com o que sucede no cosmos”, desde o desejável ao impensável, desde a quietude à agressão, desde a cor ao escuro.
assas

19 março 2007

(o prazer em repouso é o prazer em desespero)






asas

gritos abrem mestrias e batutas
e palavras fogem dos cálidos dedos das mãos.
por entre versos e reentrâncias
há memória de um lá longe que não se conhece:
só um sítio.

há manhãs escuras prolongadas até às outras
e no bico têm uma esperança mal entendida.
há noites em que um jardim azul te vem provar
e coça-te as pontas
o que tens de invicto.

fazer o quê quando as manhãs são papel-de-químico?

sussurra aqui “sem acordares”, isso,
assim a manhã perdura repete
afigura-se ao sol como uma bandeira desfraldada,

e sobe
subida de frente para uma sujeição que não se percebe.
asas

15 março 2007

um problema de metafísica

é bom saber que vives
sendo eu por detrás da tua sombra,
dentro da filigrana selvagem das peles.

é bom saber isso
saborear isso na totalidade
ver que vives num espelho arterial,
colorido indecifrável
simples sem mente.

assas

14 março 2007

vergonha tanta



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asas
asasas
achava que podias estar sem roupa fora do verso
assim para descobrir,

não brasa extinta
nem face assim cinzenta
ou pedra raiada no pó a despontar
um sorriso tolo.

como um pavio de célula.

fora do verso achava que querias que eu estivesse
assim vestido num retalhe de uma cascata,
não ao de longe na censura
não ao de longe na caridade.

no fundo
achava que podíamos querer uma espécie de nudez,
não o afogamento ou o vício das gentes com gás.

tantavergonhavergonhatantatanta.
assa

12 março 2007

papel d'água

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era a epopeia como agora é,
a caça nua do disparate
era o azul-cinzento do princípio da noite

era a poesia na mão dos dias
indo secretamente molhar-se às escuras
cantando cantando

era por isso não arriscar uma palavra muito alta
antes cair-se assim com os dedos no meio da boca,

sentindo o gosto de um soluço
ou a procura do poema não se sabendo onde.

aasas

11 março 2007

às 11 e às 11 e meia

sonho por volta das 11 da manhã

ele comprara uma televisão nova: era daquelas grandes, lisa e fina como as que agora aparecem nas propagandas das lojas de electrodomésticos. Era uma televisão como aqueles painéis ou telas e trazia um comando. Bem junto à parede que é pintada a tinta de grão, ele não soubera porém apontar o comando como devia ser e a televisão não se ligava nem por nada. Fui eu depois que saíra do quarto e pus-me a mexer no comando. Os canais começaram a aparecer em códigos ingleses que são os universais, mas não são bem ingleses porque têm números e siglas de estações e frequências multilingues. Nunca percebi nada disso. Era suposto que o comando resolvesse o silêncio e a teimosia escura da televisão. Mas nem assim. Os canais apareciam e desapareciam como quando ou quem envia e apaga sms. E ele comprara a televisão dos seus sonhos, tão elegante que era só vinha dar à sala mais espaço para espalhar os livros, os cinzeiros e os vasos. Ficaram depois os dois agarrados ao comando, um na ponta e o outro na outra. O comando era grande também. Mas a televisão não os ligara.
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assasas

sonho por volta das 11 e meia da manhã

o amigo dela tinha comprado uma maqueta da cooperativa onde eu vivi e enquanto ela me ia contando isso, subindo a rua, percebi que esse amigo estava a torná-la feliz porque lhe tinha telefonado. Eu não queria que o amigo dela soubesse que a maqueta que ele tinha comprado era da cooperativa onde eu vivi, porque apenas não me apetecia que alguém soubesse como eram as casas e os bancos e as ruas do sítio onde passei parte dos meus primeiros anos de infância. Por isso escondi-me atrás da primeira cabine telefónica que apareceu, porque de repente o seu amigo cruzou-se com ela. Com quase quarenta anos, aquelas calças eram para andar de skate, mas o casaco combinava bem com a t-shirt esverdeada com umas duas riscas amarelas e o cabelo preto mais ou menos espetado também não lhe caía mal. Era um amigo bem parecido até. Ela corou, como quase sempre aliás, e pôs-se a pentear a franja com os dedos para disfarçar talvez algum nervo. Atrás da cabine, eu via isto tudo. O amigo dela trazia também um saco pendurado quase até aos joelhos mas não devia ser pesado, nem sequer a tal maqueta estaria lá dentro e nem muito menos isso teria interesse porque nem ela nem ele têm algum escritório de arquitectura ou uma biblioteca. Pouco depois ele deu-lhe um beijo num dos lados da face, muito perto do vértice do lábio e deve ter sabido bem. Mas três pessoas apareceram no passeio que passava atrás da cabine onde me havia escondido. Uma mãe, um pai e uma criança talvez com quatro anos e por isso mesmo esta criatura pequena deu comigo. Não foi por mal; que bom para nós, adultos, se nos procurássemos e nos encontrássemos assim com tanta espontaneidade. Mas isto não quer dizer que as crianças sejam naturalmente espontâneas e também não era isso que eu estava a pensar naquele momento. Apareci então precipitado, saltando da cabine, assim de rompante “por aqui, passeando, como vão?”, e a minha amiga arregalou-me os olhos e eu arregalei-lhe os meus a seguir. Ficámos os três a comentar por uns minutos a passagem das outras três pessoas e dizendo que a criança era engraçada. O amigo dela, como era muito simpático, até lhe acenou e os prováveis pais adoraram isso. Depois a minha amiga despediu-se do amigo ou ele é que se foi embora e ela ficou só comigo, enxaguando umas ligeiras lágrimas que entretanto lhe saíram dos olhos.
asasas

10 março 2007

Estou sem saber onde. Acho que me estou a lembrar do antónio variações. Mas o que toca e que agora ouço é o patrick wolf. Estou gasto. Tenho a sensação de que tudo vi sem nada ter visto ainda. Não há nomes médicos para isto. Há talvez aqueles nomes que chamamos a nós mesmos para nos castigarmos dos lugares ocos que encontramos nos contornos do corpo. Deitei-me e pus-me a olhar para o tecto. Está lá um ponto qualquer acastanhado, pequeno e semi-rectangular. De certeza que está parado, mas vejo-o a dar pequenos passos como se arrastasse uma cauda. Deve ser um bicho perdido. Não me apetece ir lá vê-lo de perto. Do outro lado da janela há muitas janelas acesas, é sábado. Eu devia estar com umas colunas coladas aos ouvidos e a ouvir uma música qualquer dos human league. A ideia é pirosa, mas é sábado. Tantas luzes ou lâmpadas nas casas do outro lado da janela. Devem estar com as televisões ligadas ou então sem preocupações de gastos com a edp. Se eu soubesse tocar violino ia agora chamar o elevador e punha-me lá dentro a fazer qualquer coisa. Mas tenho pouca força. Houve umas violas e uns baixos e umas gaitas que em tempos já toquei. E faziam parte de um grupo. É boa a ideia de grupo, mas não ao ponto de a querer desejar para sempre. Tenho uma querida amiga que me pôs a ver os felinos na televisão. Foi bom, por cinco segundos. Tenho uma querida amiga que não está na televisão, porque ela queria ser um gato, um gato que casou com uma gata ou o contrário. Parece ser impossível sonhar com grandes coisas. Há miúdos subindo e descendo as ruas de mp3 no bolso. Há miúdas que têm óculos de sol maiores do que as suas caras e todos iguais. Há carrinhos de bebés a entrarem e a saírem dos restaurantes e das praças da alimentação dos shoppings às onze da noite. Estou mas é sem saber onde. Ouço-me agora: toma atenção ao que foges, é da tortura ou a tortura é já o esófago onde os segredos se enrolam. Vamos jogar às escondidas, vamos jogar à bola ou qualquer coisa assim. A evidência que julgo existir não é evidente. Acho que sei sempre falar ou ver a evidência, porque se é evidente deve ser fácil lidar com ela. Além disso, acho que sei sempre lidar com as coisas. L-i-d-a-r: que palavra esquisita para nos referirmos à relação com a vida, como se ela fosse uma lide. É um trabalho existir, sim. Mas é preciso lidar-se com isso, como se lida com uma vassoura ou com o programa da máquina de lavar loiça? Há muitas ruas com sentidos obrigatórios e sentidos proibidos. Quase sempre me engano nos sentidos. Tenho um plano de sentido e até acho que tem de ser bem definido. Afinal, emoção e razão são dilemas velhos. Enche-se um prato com comida, molham-se os lábios e a língua com um sumo ou então com uma água mineral e, pronto, por momentos há um acto cumprido, há uma tarefa que deu sustento ao corpo e devia-se ir dormir como tem de ser. Mas há fotografias a mais espalhadas pelas estantes: três e eu já acho que são muitas. São as mães e os pais, os sobrinhos, amigos e coisas que só estão para estarem em cima do pó. Vou engolir as fotografias todas, metê-las no meio dos cogumelos do jantar e fazer um relatório como se isso fosse uma experiência com ratos. As evidências são para serem lidas como cenários, têm papel, cor, máscaras, roupas, falas, dramas e relações. São então histórias. E nas histórias há hóspedes, malas, velas, livros e jardins. É sábado e vou fazer um refrão para interromper as maldições das histórias. Vai ser um refrão sem estrofe, vai ser uma estrofe sem verso, vai ser um verso sem letra. Só ossos para roer. E brinquedos para lhes tirar as peças. Porque nunca gostei de fazer puzzles. O sábado começou agora.
asass