28 fevereiro 2007

foto-x

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Hoje foi a segunda vez que o simpático senhor iraniano com alma de gepeto me ofereceu um pão para além dos que lhe pedi. Soube bem. Sobretudo depois de ter estado com a boca escancarada e a salivar-me por todos os lados deitado na maca da dentista. É horrivel, mas fiquei por baixo. Ia cruzando os braços, torcendo os tornozelos, rodando os sapatos que me pareciam estar do outro lado da janela da sala. O transpirar das mãos misturado entre os dedos, a ganga entre as pernas já meia húmida por causa do suor seco da pele. Terrível. Fiquei depois refém dos raios x. As radiações estavam lá todas, circulando por dentro e por fora. Mas é bom. Apanhado por uns segundos, a precisar de estar bem quieto, espero um capacete branco que desce mais ou menos ágil. O resto é um som agudo que se escuta como um zumbido. Depois o painel fluorescente em cima da mesa põe a nu a ausência de simetria, o desequilíbrio das arcadas dentárias, o sítio preto por onde respira a contenção do corpo e que se julga estar bem. Temos um sorriso metal também, feito de um acrílico que revela a idade da boca, o que é excesso e o que é defeito, o que se tem limpo e o que se tem sujo, o que abre e o que fecha como tem de ser. Mas o que interessa agora é que aquele senhor iraniano piscou-me o olho e por vinte cêntimos trouxe três pães. Quando lá voltar vou dar-lhe um beijo. Acho que ele é avô de toda a gente. Por agora, dois valiuns por noite.
aas

27 fevereiro 2007

:dilemas de michel houellebecq

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"(...) eram conhecidas as suas dificuldades em comprar uma cama. Havia meses que tinha decidido fazer essa compra, mas a concretização do projecto tornara-se impossível. (...) A compra de uma cama, nos dias que correm, apresenta efectivamente enormes dificuldades e pode de facto levar ao suicídio. Primeiro, há que prever a entrega e logo tirar em média meio dia de trabalho com todos os problemas que isso pode vir a trazer. Por vezes, os fornecedores ou não aparecem, ou não conseguem transportar a cama pela escadaria acima, e é-se obrigado a pedir mais meio dia de folga suplementar. (...) Mas a cama, de entre todos os móveis, levanta um problema especial e eminentemente doloroso. Se quiseremos ter em conta as considerações do vendedor, seremos obrigados a comprar uma cama de casal à qual não vamos conseguir dar utilidade, haja ou não haja lugar onde se possa enfiar. Comprar uma cama individual é o mesmo que confessar publicamente que não se tem vida sexual e que não se prevê ter uma no futuro próximo, nem tão pouco no futuro longínquo (pois as camas de hoje duram uma eternidade, muito mais do que o prazo de garantia; é um negócio de cinco ou dez, ou até vinte anos; é um investimento sério para o resto da vida; as camas duram em média bastante mais tempo do que os casamentos, embora não se saiba muito bem porquê). Mesmo a compra de uma cama de corpo e meio aos olhos do vendedor faz-nos passar pelo pequeno burguês mesquinho e medíocre; para os vendedores a cama de casal é a única que vale verdadeiramente aquilo que se paga por ela; desta forma obtém-se o direito ao respeito e à consideração do vendedor, bem como um ligeiro sorriso cúmplice."
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(Michel Houellebecq, "A extensão do domínio da luta")

(as escadas em direcção à infância)

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as frutas passam lentas
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têm o suor quente da timidez

estão no tecto escuro e nas faces viradas de costas.

à minha volta a alegria pueril
contou os dentes abertos de um sorrido sem duplo,

de um passado repentino à superfície das conchas.
adormeci enquanto via o horizonte recortado
pela luz dos corpos.
sas

25 fevereiro 2007

(o telegrama)

na sua fraca tentativa de lhe meter uma sílaba
no meio do peito havia também muito pouco a esperar.

mas apesar de tudo era um peito liso e magro
bem desenhado como deve ser um lábio

asas
e tínhamos um mês de verão para experimentar a coisa.

asas
depois do almoço era quando a praia
lhes sabia melhor
e por volta das sete da tarde já o mar era vencido,

asas
lá no meio como pérolas de ostras crianças ou como
quase nada de vícios. enquanto a pele tomava o bronze
demorava-se mais lendo o fantasma da ópera,
talvez preferisse tomar as sílabas daquele livro às minhas
e à noite era difícil adormecer.

asssa
havia uma varanda rasa ao chão e era fácil ler o céu
enquanto eu desejava não ser eu na casa. tu tinhas
um telegrama na mão que as estrelas vinham buscar

sddas
e eu não.

asas

23 fevereiro 2007

camus: um estrangeiro


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asas
"hoje a mãe morreu" - pode haver expressão mais poderosa para ilustrar o começo de um conto, de um livro, de um feixe biográfico, como o do Sr. Meursault? É que é o começo de um abismo, mas ao contrário: a minha mãe que me nasceu, morreu; estarei então agora condenado a morrer também. Mas o Sr. Meursault não é um homem comum. E é isto que nos faz querer conheço-lo, perceber porque motivo é tão sumário nas palavras e no entanto tão desejável em sentido. "O Estrangeiro", de A. Camus, é uma condenação das pessoas todas que não se reconhecem nos outros e ainda bem que se escreveram histórias destas durante o séc. XX. Se eu tivesse uma máquina do tempo punha-me agora mesmo a falar com ele - o Sr. Meursault - e dizia-lhe que devia ter dito à Maria que a amava e que era bom (não apenas que seria bom) casar com ela. Porque eu sou das certezas singelas, talvez, mas ele não. Perguntava-lhe como é que ele aguentava um domingo inteiro à varanda observando os eléctricos e os candeeiros. Perguntava-lhe também como é que as paredes de um quarto e de uma cela podem guardar tantos mistérios e faces, faces que aparecem e desaparecem como ondas salgadas. O Deus do Sr. Meursault era o sol vermelho, o mar azul e verde e as estrelas no lusco-fusco do fim do dia. Mas sem grande fetiche. Apenas sossego. Tudo o resto era um discurso que não compreendia. A sua condenação era o princípio de todo o seu reviver. E nada do que fazia ou fez era para ser explicado. Apenas pela verdade se morre.
asasas
"Voltei a tomar café com leite, que era óptimo. Quando saí, o dia estava completamente levantado. Por cima das colinas que separam Marengo do mar, o céu estava cheio de tonalidades de vermelho. E o vento, que passava por cima delas, trazia um cheiro de sal. Era um bonito dia que se estava a preparar."
asasas

15 fevereiro 2007

all cats are grey

assa
i NeVeR tHoUgHt ThAt i WoUlD fInD mYsElF iN bEd AmOnGsT tHe StOnEs


iN tHe CaVeS alL cAtS aRe GrEy
asa













(foto de pedro andré)

manhã de árias simples
















antes, o milho não podia secar com amor
porque o sol é uma ferramenta da fome.

asas
esta fome é diferente: é veres-me eu e as palavras,
confidente num cinzeiro que as apaga e as re-escreve.
tentado a prometer uma manhã de árias simples.
custa acordar, eu sei.
mas que mal tem amares-me como se de mim precisasses?
assa

que catástrofe te livrou de mim?
que problema pode ser maior eu existir?
ama-me para sempre

14 fevereiro 2007

o são valentino não sabe fazer respiração boca-a-boca.












serotoninas












e en_s_i_n_e_m -- -m_e-- a-- v_i_v_e_r-- s_e_m- -m_i_m
asas

13 fevereiro 2007

(a irrigação)






















vou passar ao lado dos corações partidos
arrastar o pé direito sobre o poço das memórias
nmnm

segurar-me dentro do outro lado
como quase orgulho.

ffdfd
vou esquecer-me dos corpos regados
pelo problema do desejo,
pensar que a sinceridade pode estar
num sítio muito bem situado e depois viver lá,

asas
repetindo-o e repetindo-me
como uma mensagem vã do dia.

sdsdsd

12 fevereiro 2007

bruce nauman

Algumas das imagens que ando para aqui a por são do bruce nauman, artista inconformado - e multivocacionado - a quem se deve a expressão "o artista verdadeiro ajuda o mundo pela revelação de verdades místicas". As que aqui aparecem são de meados dos 70 do outro século, como a EAT/DEATH (72). Ainda não lhe sei grande coisa, vou por isso continuar a procurar. A espécie de pesquisa biográfica tem destas coisas. Pode abrir-nos portas perfeitas.
asasasasasasas













sim: sim: sim: sim mesmo!

Cinquenta e nove por centro. Há um feixe de crença, afinal.
É que estamos todos de parabéns.

dentro dos vasos comunicantes da casa

tenho pouco tecto em casa.
mas eu acredito nos traços costeiros da tua infinitude.

11 fevereiro 2007

cesariny, meu amor,
trincaram-me todo por dentro.
e nem sequer vi a boca abrir-se.
vi sim uma boca como a dos peixes,
talvez colada num tronco de uma árvore
mas sem sítio para nascer.
cesariny, meu amor,
eu sou um caracol velho numa bolha de água.

10 fevereiro 2007

(tréguas)

















que sou eu senão o resto do teu dia?

o sonho da gata leitora

às vezes, quando faço amor com a simone, é difícil não ser como ela. talvez tenha a tendência para achar que quando se faz amor com a simone seja preciso ser ela ou como ela, os beijos são pequenas trincas e as carícias são como deitar o rosto numa almofada. o que desejo por isso é saber beijar e acariciar assim. depois, e num vaivém muito repetido, a simone deixa-se adormecer com a cabeça presa ao peito, segurando o queixo com as pontas de um dos seus membros mais delicados. acorda, retorce-se, olha em redor, volta a espreguiçar-se e toca levemente o meu nariz com um gemido. abandona-se novamente em mim, permite que passeie os meus dedos pelo seu ventre e conduz-me, de vez em quando, as mãos, aproximando-as da sua boca e dos seus lábios. temos alguma tendência também para nos contemplarmos, imaginarmos talvez o que é que seria de nós se não nos tivéssemos e depois de sedutores passamos a seduzidos em três tempos. gostava de saber se a simone é mais pragmática do que contemplativa: na verdade, ela pode apenas olhar-me em silêncio sem eu nunca saber, perceber ou aceder ao que lhe passa pela mente. e contudo, ela espreita-me muito. no banho, na cama, enquanto cozinho, enquanto trabalho ou leio, quando falo ao telefone ou quando vejo televisão. durante o banho, não sei se estranhamente, é o momento em que me sinto mais constrangido por saber que me espreita. parece decifrar cada contorno do meu corpo, como se interrogasse o que mãos, pés, barriga, cabeça, sexo e pernas quisessem dizer. eu não faço o mesmo. deixo que ela se banhe à vontade. embora goste de olhar também. a simone é muito precisa quando toma banho. demora bastante tempo a terminar o que toma de manhã. à tarde, geralmente, faz pequenas abluções aqui e ali, depois de comer. à noite é mais completa, senta-se e estica a sua língua até ao pescoço, dobra o corpo e rapidamente massaja o abdómen e as costas e suspira entre o trabalho. volta a sentar-se, mas já mais inclinada para um dos lados e estende as suas carícias até à extremidade do seu peso, dá um ligeiro mimo ao rosto e aos olhos e fica a olhar-me. eu curvo-me e deito-me. costumamos ficar assim longas horas. a meio abro um livro e ela pede-me para lhe dizer o que está lá dentro: invento coisas, faço de conta que ela sabe ler e ponho-me a falar sem grandes rodeios. quando trabalho ou escrevo acontece algo diferente. a simone gosta de se empoleirar no meu ombro e fica a fitar o texto a produzir-se, entreolhando o computador e a música que do outro lado da sala vai tocando. ainda não lhe deu para andar vestida em casa, mas eu gosto dela nua. consigo apreciar muito melhor os perfis do seu movimento, encantar-me com o exercício do seu andar e com a honestidade do seu corpo. quando nos pomos a olhar a rua, os prédios ou o mar, a simone dá-me pistas de que é mais contemplativa do que pragmática. diz-me que gostava de deslizar no dorso de uma gaivota e eu digo-lhe que também. é capaz de insistir muito; eu nem tanto. mas a melodia que julga existir no mundo que voa é um bom princípio.

09 fevereiro 2007

(espirais)




tenho um amigo que quando fala não tem línguas
a mediar o que diz
mas antes milhares de pétalas em fogo que se entrelaçam
como dedos curiosos em corredores de ócio.
fico viciado nisto quando conversamos,
entramos em ruas fascinantes e sem relógios
e não temos camisolas amarelas nem números para mostrar.

08 fevereiro 2007

todos os meus maus pensamentos

Ultimamente, tenho ouvido repetidas vezes o último álbum (CD, para dizer como deve ser) dos Montgolfier Brothers (2005). Por alguma razão, o título que nele podemos ler, cuidadosamente na página do jornal que o senhor segura, fascina-me. Devo ser um fascinado por objectos sombrios e pensamentos maus. E se calhar até me culpo e gosto. Quem sabe. Eu sei que tenho uma relação não muito evidente com as sombras, com as minhas. Mas vai variando. Ainda bem, não há corpo que aguente. A música que dá o título ao álbum é de ouvir como se estivessémos a ouvir um disco riscado. Ou então, como se fazia antes, é de ouvi-la como quando ouvíamos aquela mesma música gravada umas vezes atrás das outras no lado A de uma Basf (normal). É que é bom, apesar de ser assim num momento que passa muito depressa, sentir que os ídolos ainda não morreram todos.



(terramoto a duas vozes)



o que eu queria era achar que tu me estavas a desejar quando eu de longe te escrevia. lembras-te? passavam vários dias e eu escrevia-te metido no tosco da esperança um recado para nos salvar da perda e do desastre. eu achava que querias que eu te escrevesse porque isso fazia do meu texto um texto mais sentido. não tens grande água onde eu agora possa ir beber, mas escrevo-te asas e luas quase do mesmo modo. quando te foste embora, logo a seguir ao terramoto daquela morte, dissemos que tudo iria continuar igual. eu seria um acorde mais ou menos solitário e de mal com a vida e tu um espelho não muito grande de cores, porque nunca quiseste ser grande. mas eu escrevia muito, dizia-te que as árvores deviam perfurar a terra e que no bolso trazia um segredo mal revelado. confessava-te, em surdina, que fazer amor contigo podia descarnar-me apagar os séculos de culpa que comigo trazia e que ter-te nos braços no amanhecer era como mergulhar uma onda. o que eu queria era convencer-me, e sem mais poder duvidar, que me podias querer por eu estar a sofrer por a ti te desejar. fiz do teu sepulcro uma germinação de vídeos que em casa ia gravando com o coração, queria ter-te numa imagem parada por um comando olhar-te como quem vê um prédio a ser construído com todas as mãos e os projectos lá dentro. havia alturas em que nos deixávamos das cartas e dos textos e na cama os corpos escreviam salivas e escuros. chamava-te ao longe e largado na cama e tu prometias-me cidades e texturas que ali aconteciam, antes e depois de todas as fontes antes e depois de todas as ruínas. se eu te escrevesse enquanto te amasse tudo teria sido diferente, não teríamos anjos para acusar nem agostos mal passados. talvez eu tivesse visto por fim que escrever-te assim enforcado não tem mistério algum ou interesse. tu talvez te apercebesses que o problema do amor não é como uma moeda que é lançada ao ar. e então era suposto haver mais coragem para sair do temor em que me punhas e eu já não acharia que dormir contigo era um precipício. o que eu queria achar era uma casa de sonhos onde eu pudesse meter um rio com uma ponte.

07 fevereiro 2007

(os pássaros da manhã mandam-nos para a cama)




tinhas metade das pernas a pedir as outras metades,
chegavas a casa quase sempre depois de um ensaio
e com uma mochila de livros e comida para partilhar,
pensava eu. bebemos bastante e talvez por isso
já fosse eu a falar da perspectiva artística das coisas,
seguindo o trajecto de roupa que nos cobria o chão
e as migalhas de pão que íamos deixando no tapete.
na sua testa muito feminina,
havia um delírio de teatro que o seu corpo me trazia
que depois de muitas voltas
eu não fui capaz de encontrar.

06 fevereiro 2007

sim: sim: sim: sim: sim!

Os debates sobre a IVG estão aí em massa e para as massas: é na tv, no rádio, na net, nas ruas, por todo o lado. Por alguma razão os media servem interesses de massas. Só quem fizer de conta é que não repara na mobilização social em torno do referendo sobre a IVG. É de espantar, realmente. Já agora também seria bom observarmos tal agitação a propósito do fim da guerra. Mas não é isso que está a ser referendado. A mania de inventar outras questões para além daquela que no próximo dia 11 vai a votação faz parte dos queridos defensores do Não. Digo "queridos" porque pelos vistos é assim que gostam de se tratar entre si e os outros (veja-se a fatídica Kátia Guerreiro a dirigir-se a uma jovem do movimento pelo Sim num dos passados prós e contras na rtp). Mas isto não interessa. Que se tratem como bem lhes apetece. O que irrita mesmo é a produção discursiva (e por isso tão retórica) que os Não insistem em levar a cabo. Aspectos como a liberdade de ser mãe, uma vida com felicidade, segurança médica, descriminalização, entre outros, parecem não ter o mínimo interesse para quem tão acerrimamente defende uma espécie de boa nova que é a protecção da vida. Como se, para nós, que vão votar Sim no referendo, a vida não interessasse para coisa alguma. Irrita mesmo é a generalização abusiva de um conjunto de ideias que os senhores e as senhoras do Não consideram inquestionáveis: todas as mulheres nasceram para procriar e reproduzir outros seres; a família é um valor absolutamente incontestável (e família com um pai, mãe e no mínimo dois filhos, de preferência um casalinho); quem aborta merece castigo de prisão, porque não interessa se se desejam crianças ou não: quando surgem sem contar, transformam-se numa espécie de fatalidade que é preciso carregar e por isso é que há as Joanas todas pelo país fora; por fim, quem defende o Não acha que está a defender as mulheres e a tratá-las bem, pois acima de tudo do que elas precisam é de caridade e de subsídios quando uma gravidez aparece sem querer. Não há paciência para tamanha desconfiança. É que não há mesmo. Por que razão as pessoas que não são favoráveis à despenalização da IVG acham-se responsáveis pelas vidas dos outros? Por que razão consideram que é preciso instituir um sistema de moralidade e de costumes a respeito da gravidez e ao abrigo de uma lei que, pelos vistos, nem sequer é aplicada? Quem seremos nós, afinal, para ajuizar uma realidade alheia como seja o desejo de uma mulher - não sabemos qual, nunca a vimos, nunca conversamos com ela - para terminar uma gravidez? A mim, o que me parece, é que a reacção alarmista dos defensores do Não assenta numa vontade de fazer prevalecer uma lógica social de comportamentos que nem mesmo eles sabem qual é. Mas o que interessa é não falar muito do que não tem solução possível, e sobretudo assim em manifestações, com barulho e tudo: se abortou, é porque quecou e, por isso mesmo, a mulher devia mas é estar quietinha. Deste modo, o que está por detrás de toda esta discussão e que é transversal às posições do Sim e do Não (ainda que os protagonistas do Sim já o tenham referido algumas vezes, talvez ainda em número insuficiente) é o problema, e que na nossa sociedade existe, relativamente à vivência da sexualidade. Num artigo recente que li n'O PUBLICO, faz-se o resumo de uma entrevista que foi feita ao antigo Ministro Roberto Carneiro, em Fátima. Olha que bem. Sobre o referendo da IVG, o Roberto diz qualquer coisa como: "nem sei porque se fala tanto neste assunto e porque é que vai a referendo. Olhe, daqui a uns tempos, temos a eutanásia, os casamentos entre homossexuais, e eu sei lá que mais". Fim da citação (que não é transcrita). É justamente neste seu "e eu sei lá que mais" que vemos toda a escuridão onde ainda o pensamento português se encontra. De tanto se falar num mal, ainda se acaba por trazer os amigos. De tanto querer discutir uma coisa, vai-se ficar a não saber coisa nenhuma (raciocínio do ex-ministro). Por isso, vamos lá deixar a sociedade como ela está, pois os modos como nascemos e morremos não são realidades determinadas por nenhum e nenhuma de nós (outra vez raciocínio do ex). Mas, na verdade, esta miscigenação de argumentos - estilo tiro ao alvo a ver o que é que pega - é insuportável. O que é que a IVG tem que ver com a eutanásia ou os gays? A seu tempo, talvez, pode ser que algumas destas questões sejam publicamente discutidas. E qual é o mal? eu vou votar sim: sim: sim: sim: sim! porque esta realidade, este mundo no qual participo, não me tem dado quaisquer motivos para nele poder acreditar. Basta a ideia da alteração dos poderes instituídos, da moral tacanha que ainda é partilhada, para a mim me dar um sentimento de maior felicidade, nem que seja através da simples introdução de alíneas no código penal.

05 fevereiro 2007

formalizando o tédio: pronto

Jurgen Klauke, o reconhecido fotógrafo que se distinguiu nas décadas de 70 e 80 do passado século, desenvolveu uma linguagem pictórica baseada em ciclos ou em sequências onde ele próprio ou os objectos metaforizam a incapacidade de comunicar, a identidade, a psique, o corpo. Formalizando o tédio é talvez a sequência que maior reconhecimento internacional lhe deu: representa a tentativa de superar uma sociedade consumista, pouco diversa, isolada e em luta com os costumes que ela mesma instituiu. E como é difícil vencer. Klauke não é portanto um artista desinteressado da produção social da sua fotografia. Encontramos muitas relações entre pessoa e trabalho, como também associações entre arte e vida, objectos andróginos e outras coisas mais. Está lá o desejo da transformação da sequência, nem que seja através do humor, mas está lá sobretudo através do recurso à figuração do corpo e dos objectos para expressar as relações precárias, mas paradoxalmente tão sedentas, com a cultura e com a palavra.
Dá vontade de pegar na energia criativa do Jurgen e levá-la para casa, pô-la a dormir connosco e celebrar o que tem mesmo de ser celebrado, de preferência compulsivamente e sem tédio. O problema é se as cadeiras nos caem em cima da cabeça.