30 março 2007

(licantropias)

asas
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asas
que engraçado posso ser a caçar-te
há sempre quem passe e me veja,
talvez nalgum dia possa eu fazer amor à beira mar,
à noite,

é que ainda não fiz, segredava-me.

disseste-me que eu nunca vou saber
o que é ter uma árvore plantada na boca,
largando sementes
nascendo sem rugas
sempre fiel à selvajaria do desejo
e da emboscada, voltou a murmurar.

pena mais tarde teres escrito tudo ao contrário,
sem paixão de beira praia
ou outras obsessões.

sinto cuidado contigo, tens gula a mais.

asas

29 março 2007

(espectros)


asas
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na cama
fica um buraco com riscas
depois de nos levantarmos. pouco dizemos,

e à entrada do sol franzimos a testa. já devíamos ter acordado,
penso.

asas

26 março 2007

(escalenos)

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sou gelo pouco gelado e muito pouco tenho para te aquecer,
acredita nisto. tivemos as nossas alturas,

(nas piores soubemos sempre o que devia ser aquecido?)

e já com os jogos todos na gaveta
estamos grandes,

sem termos crescido quase nada.

fizemos as visitas ao médico, corremos urgências
e lemos histórias na meia lua das horas,
descemos as curvas por entre os ossos
e pingámos as mesas com lágrimas

cuspo
pedaços de unhas partidas
pestanas
e restos de garganta
envelhecida.

asa

24 março 2007

novo método. práticas de exploração

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Ele via o mar por entre dois prédios em construção. Gruas e patas peludas de bichos cobriam as paredes dos dois prédios. Interrogava-se sobre a razão de tais construções apressadas: quase sem tempo para medir o tempo que levavam a ser construídas. Interrogava-se ainda depois sobre a diferença entre o tempo das coisas físicas e o tempo das coisas pensadas, pois em princípio as primeiras não pensam, são resultado de se pensar sobre elas. Correu as janelas para um dos lados e um cão de pêlo manchado, pequeno, corria por entre duas portas abertas. Um gato esconde-se. Subiu o volume do rádio: a terra tinha tremido algures no mundo e muito provavelmente teria assustado centenas ou milhares de pessoas. Estamos todos zangados uns com os outros. Lembrou-se que por volta dos sete anos, perto do depósito do lixo, apontou com os amigos para meia dúzia de estrelas que o céu de verão trazia assim à tona e até à meia noite dessa noite ficou a perguntar-se se algum dia chegaria às estrelas numa volta de bicicleta. Começou aí a exploração de si. De tudo que saberia que era impossível. De querer fé e de saber que isso era impossível de ter. Quis voltar-se para o mar, mas aterrorizado com a ideia de que um dia pudesse ser engolido pelas ondas. Talvez por isso não se aproxime muito da costa. Vai fazendo contemplações à distância, ponderando cada um dos passos, cada um dos seus afastamentos. Mas gosta da água. É capaz de tomar três banhos num só dia. Existem orifícios que gosta que estejam bem limpos, tem a ilusão de uma ossada de vidro, limada e bem parecida, a ideia de ser bem recebido pelas raízes. As temperaturas sobem, ainda cantam as buzinas e as filas de pessoas com sacos nas mãos. Há dias achou que havia descoberto um novo método implacável, novíssimo, para compor textos. Qualquer coisa como alinhar o texto sempre a partir de dois ou múltiplos autores. Soube depois que isso era um intratexto. Gostou de saber isso e da palavra também. Por isso, a ideia que teve baseava-se nas ideias todas que já lhe tinham passado, fisicamente falando e criativamente pensando. “Não posso andar mais com estes sapatos” “a sério?” “ahahahahahahah!”, “achas? Aquilo é que é!” “disseste que tinhas ido lá” “vais deixar cair isso caramba!” “sim, sim” “olha, não tenho este” “é melhor não, é caro” “está gente, não vês? espera!” “vai levantar dinheiro” “posso passar para o outro lado?” “uma gaja cansa-se, meu deus”. Reflectiu um bocado nisto durante quatro cigarros. À volta do fumo faz uma síntese e o resultado é nada. Olha outra vez para o canto do mar. Está sem ondas. Fecha as janelas porque começa a entrar um vento frio. Duvida se o que ouve são mesmo os pássaros ou se é algum efeito sonoro, moderno, do trânsito ou assim. Mas são mesmo os pássaros. Depois concluiu: desde a ideia de que chegaria às estrelas numa volta de bicicleta até aos quatro cigarros de agora, ele não fez mais nada que não seja explorar-se a si mesmo. Como lhe poderiam pedir isso?, perguntou-se enquanto lavava os dentes. Ainda colam as pontas dos dedos, mesmo depois de lavadas. Deve ser um efeito secundário da exploração, a espinha nervosa do questionamento encurralada como um animal dentro de um círculo de fogo. Mas pouco lhe interessava isso. Se tivesse de cumprimentar alguém com um aperto de mão teria o cuidado de não apertar muito talvez. “O que é que vamos matar a seguir em ti”, saiu de casa dizendo.
asas

23 março 2007

a minha mãe é uma monstra

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Com um queixo do tamanho de uma rocha de beira-mar, com sítios onde as pulgas se espetam e escavam a pele, a minha mãe é do tamanho do seu rosto que é monstra. Horrível. Digna de posar numa daquelas feiras de anormais. Tenho medo. Julguei que ela pudesse ser um pouco mais bonita. Servi-lhe uma refeição numa daquelas tigelas de louça gasta para o escuro, sentado num banco de pinho velho. Eu era tão pequeno, ficava com a cabeça pela altura da mesa e por isso precisava de me esticar muito para levar a colher àquela boca meia morta. Depois as mãos. Outras partes do monstro a prenderem-me o olhar, mas o coração também que de tanto bater quase pulava cá para fora. Fui deitá-la a seguir, sentindo as elevações da pele nos seus dedos engarrafados, nos polegares rugosos e pesados. Eu pensava que a minha mãe pudesse ser um pouco mais bonita. Estava um cair de noite azulado, do céu caíam gotas como que de um petróleo pastoso que ia soldando o telhado frágil da casa. Uma cozinha apenas. Uma casa, uma divisão. Uma cozinha que em termos de dimensão se confundia com o tamanho da mesa, obliquamente encostada à parede de pedra preta. Uma fogueira, num canto mais iluminado, e um balcão encostado na outra parede com restos de uma torneira sozinha e uns cacos de plástico com migas de bolachas dentro. A outra parede era a porta, mas não a víamos, embora soubéssemos que era ali que a porta estava. Mas deitá-la no canto que sobrava na cozinha não foi fácil.
asas

22 março 2007

detalhe e frigidez


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Quem não dorme é refém dos barulhos, do ruído que estala dentro. Quem não dorme faz amor com o cosmos, porque é obrigado. Há todo um sistema de vestes compridas que circunda quem não dorme e à mão de contemplar: são os números vermelhos das horas no despertador, os lençóis enrolados e que as mãos arrumam, o ressonar longínquo da vizinha ou do vizinho, as persianas baixas mas a deixarem pequenas brechas para espreitar. Se não se dorme à noite então contempla-se tudo, juntando os pontinhos pretos que aparecem aos olhos fechados como viagem de astronauta. É engraçado como não adormecendo chega um universo apressado a quem está acordado. Desejar dormir é mais do que querer dar descanso ao cérebro. As sinapses continuam todas lá, mesmo quando nos esticamos. Sucedem portanto coisas inimagináveis a quem dorme. São as partes do corpo que se estendem como as antenas dos carros, as palpitações nas pontas dos dedos e das pestanas, o virar talvez violento de costas e barriga. Oníricas: é a primeira palavra no plural que nos vem à cabeça ao pensar em quem dorme. Diz-se que “quem dorme, opera e colabora com o que sucede no cosmos”, desde o desejável ao impensável, desde a quietude à agressão, desde a cor ao escuro.
assas

19 março 2007

(o prazer em repouso é o prazer em desespero)






asas

gritos abrem mestrias e batutas
e palavras fogem dos cálidos dedos das mãos.
por entre versos e reentrâncias
há memória de um lá longe que não se conhece:
só um sítio.

há manhãs escuras prolongadas até às outras
e no bico têm uma esperança mal entendida.
há noites em que um jardim azul te vem provar
e coça-te as pontas
o que tens de invicto.

fazer o quê quando as manhãs são papel-de-químico?

sussurra aqui “sem acordares”, isso,
assim a manhã perdura repete
afigura-se ao sol como uma bandeira desfraldada,

e sobe
subida de frente para uma sujeição que não se percebe.
asas

15 março 2007

um problema de metafísica

é bom saber que vives
sendo eu por detrás da tua sombra,
dentro da filigrana selvagem das peles.

é bom saber isso
saborear isso na totalidade
ver que vives num espelho arterial,
colorido indecifrável
simples sem mente.

assas

14 março 2007

vergonha tanta



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asas
asasas
achava que podias estar sem roupa fora do verso
assim para descobrir,

não brasa extinta
nem face assim cinzenta
ou pedra raiada no pó a despontar
um sorriso tolo.

como um pavio de célula.

fora do verso achava que querias que eu estivesse
assim vestido num retalhe de uma cascata,
não ao de longe na censura
não ao de longe na caridade.

no fundo
achava que podíamos querer uma espécie de nudez,
não o afogamento ou o vício das gentes com gás.

tantavergonhavergonhatantatanta.
assa

12 março 2007

papel d'água

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era a epopeia como agora é,
a caça nua do disparate
era o azul-cinzento do princípio da noite

era a poesia na mão dos dias
indo secretamente molhar-se às escuras
cantando cantando

era por isso não arriscar uma palavra muito alta
antes cair-se assim com os dedos no meio da boca,

sentindo o gosto de um soluço
ou a procura do poema não se sabendo onde.

aasas

11 março 2007

às 11 e às 11 e meia

sonho por volta das 11 da manhã

ele comprara uma televisão nova: era daquelas grandes, lisa e fina como as que agora aparecem nas propagandas das lojas de electrodomésticos. Era uma televisão como aqueles painéis ou telas e trazia um comando. Bem junto à parede que é pintada a tinta de grão, ele não soubera porém apontar o comando como devia ser e a televisão não se ligava nem por nada. Fui eu depois que saíra do quarto e pus-me a mexer no comando. Os canais começaram a aparecer em códigos ingleses que são os universais, mas não são bem ingleses porque têm números e siglas de estações e frequências multilingues. Nunca percebi nada disso. Era suposto que o comando resolvesse o silêncio e a teimosia escura da televisão. Mas nem assim. Os canais apareciam e desapareciam como quando ou quem envia e apaga sms. E ele comprara a televisão dos seus sonhos, tão elegante que era só vinha dar à sala mais espaço para espalhar os livros, os cinzeiros e os vasos. Ficaram depois os dois agarrados ao comando, um na ponta e o outro na outra. O comando era grande também. Mas a televisão não os ligara.
dsds
sdsdsd
assasas

sonho por volta das 11 e meia da manhã

o amigo dela tinha comprado uma maqueta da cooperativa onde eu vivi e enquanto ela me ia contando isso, subindo a rua, percebi que esse amigo estava a torná-la feliz porque lhe tinha telefonado. Eu não queria que o amigo dela soubesse que a maqueta que ele tinha comprado era da cooperativa onde eu vivi, porque apenas não me apetecia que alguém soubesse como eram as casas e os bancos e as ruas do sítio onde passei parte dos meus primeiros anos de infância. Por isso escondi-me atrás da primeira cabine telefónica que apareceu, porque de repente o seu amigo cruzou-se com ela. Com quase quarenta anos, aquelas calças eram para andar de skate, mas o casaco combinava bem com a t-shirt esverdeada com umas duas riscas amarelas e o cabelo preto mais ou menos espetado também não lhe caía mal. Era um amigo bem parecido até. Ela corou, como quase sempre aliás, e pôs-se a pentear a franja com os dedos para disfarçar talvez algum nervo. Atrás da cabine, eu via isto tudo. O amigo dela trazia também um saco pendurado quase até aos joelhos mas não devia ser pesado, nem sequer a tal maqueta estaria lá dentro e nem muito menos isso teria interesse porque nem ela nem ele têm algum escritório de arquitectura ou uma biblioteca. Pouco depois ele deu-lhe um beijo num dos lados da face, muito perto do vértice do lábio e deve ter sabido bem. Mas três pessoas apareceram no passeio que passava atrás da cabine onde me havia escondido. Uma mãe, um pai e uma criança talvez com quatro anos e por isso mesmo esta criatura pequena deu comigo. Não foi por mal; que bom para nós, adultos, se nos procurássemos e nos encontrássemos assim com tanta espontaneidade. Mas isto não quer dizer que as crianças sejam naturalmente espontâneas e também não era isso que eu estava a pensar naquele momento. Apareci então precipitado, saltando da cabine, assim de rompante “por aqui, passeando, como vão?”, e a minha amiga arregalou-me os olhos e eu arregalei-lhe os meus a seguir. Ficámos os três a comentar por uns minutos a passagem das outras três pessoas e dizendo que a criança era engraçada. O amigo dela, como era muito simpático, até lhe acenou e os prováveis pais adoraram isso. Depois a minha amiga despediu-se do amigo ou ele é que se foi embora e ela ficou só comigo, enxaguando umas ligeiras lágrimas que entretanto lhe saíram dos olhos.
asasas

10 março 2007

Estou sem saber onde. Acho que me estou a lembrar do antónio variações. Mas o que toca e que agora ouço é o patrick wolf. Estou gasto. Tenho a sensação de que tudo vi sem nada ter visto ainda. Não há nomes médicos para isto. Há talvez aqueles nomes que chamamos a nós mesmos para nos castigarmos dos lugares ocos que encontramos nos contornos do corpo. Deitei-me e pus-me a olhar para o tecto. Está lá um ponto qualquer acastanhado, pequeno e semi-rectangular. De certeza que está parado, mas vejo-o a dar pequenos passos como se arrastasse uma cauda. Deve ser um bicho perdido. Não me apetece ir lá vê-lo de perto. Do outro lado da janela há muitas janelas acesas, é sábado. Eu devia estar com umas colunas coladas aos ouvidos e a ouvir uma música qualquer dos human league. A ideia é pirosa, mas é sábado. Tantas luzes ou lâmpadas nas casas do outro lado da janela. Devem estar com as televisões ligadas ou então sem preocupações de gastos com a edp. Se eu soubesse tocar violino ia agora chamar o elevador e punha-me lá dentro a fazer qualquer coisa. Mas tenho pouca força. Houve umas violas e uns baixos e umas gaitas que em tempos já toquei. E faziam parte de um grupo. É boa a ideia de grupo, mas não ao ponto de a querer desejar para sempre. Tenho uma querida amiga que me pôs a ver os felinos na televisão. Foi bom, por cinco segundos. Tenho uma querida amiga que não está na televisão, porque ela queria ser um gato, um gato que casou com uma gata ou o contrário. Parece ser impossível sonhar com grandes coisas. Há miúdos subindo e descendo as ruas de mp3 no bolso. Há miúdas que têm óculos de sol maiores do que as suas caras e todos iguais. Há carrinhos de bebés a entrarem e a saírem dos restaurantes e das praças da alimentação dos shoppings às onze da noite. Estou mas é sem saber onde. Ouço-me agora: toma atenção ao que foges, é da tortura ou a tortura é já o esófago onde os segredos se enrolam. Vamos jogar às escondidas, vamos jogar à bola ou qualquer coisa assim. A evidência que julgo existir não é evidente. Acho que sei sempre falar ou ver a evidência, porque se é evidente deve ser fácil lidar com ela. Além disso, acho que sei sempre lidar com as coisas. L-i-d-a-r: que palavra esquisita para nos referirmos à relação com a vida, como se ela fosse uma lide. É um trabalho existir, sim. Mas é preciso lidar-se com isso, como se lida com uma vassoura ou com o programa da máquina de lavar loiça? Há muitas ruas com sentidos obrigatórios e sentidos proibidos. Quase sempre me engano nos sentidos. Tenho um plano de sentido e até acho que tem de ser bem definido. Afinal, emoção e razão são dilemas velhos. Enche-se um prato com comida, molham-se os lábios e a língua com um sumo ou então com uma água mineral e, pronto, por momentos há um acto cumprido, há uma tarefa que deu sustento ao corpo e devia-se ir dormir como tem de ser. Mas há fotografias a mais espalhadas pelas estantes: três e eu já acho que são muitas. São as mães e os pais, os sobrinhos, amigos e coisas que só estão para estarem em cima do pó. Vou engolir as fotografias todas, metê-las no meio dos cogumelos do jantar e fazer um relatório como se isso fosse uma experiência com ratos. As evidências são para serem lidas como cenários, têm papel, cor, máscaras, roupas, falas, dramas e relações. São então histórias. E nas histórias há hóspedes, malas, velas, livros e jardins. É sábado e vou fazer um refrão para interromper as maldições das histórias. Vai ser um refrão sem estrofe, vai ser uma estrofe sem verso, vai ser um verso sem letra. Só ossos para roer. E brinquedos para lhes tirar as peças. Porque nunca gostei de fazer puzzles. O sábado começou agora.
asass

08 março 2007

(idiomas pouco ou nada domados)









isto é o meu espaço de poço turvo
isto é o ruído porcelana
apontado para o diâmetro certo e cintilante.

hoje, tu e eu, vamos soprar este espaço como um facto.

os braços estendidos sobre as coxas
os olhos nas pontas dos dedos e a muralha de uma palavra
vinda ao acaso.

sem pontos pretos ou outros.
asasa
é melhor assim, não conhecendo a fraqueza
ou esta tentativa menor.
é melhor a irresponsabilidade da catástrofe,
chorando desidratada e sem horário.

isto é o meu espaço virado de frente para o rumor
e carbonizado por querer.
asasas

07 março 2007

fóssil

as
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as




eu sei que tens estrelas penduradas num corpo de papel
que levas à boca. fazes-me lembrar um colar de gotas incandescentes

deslizando como uma onda,

terna e sedutora.

eu penso muito com a cabeça e nunca pensei na minha
relação com o chão,
com os sítios onde te encontro e que piso.
asas
vou passar a perseguir-te como uma alga
sorvendo para o corpo o mais profundo medo
de te perder.

e na luz do meio-dia vou abrir os fósseis nos meus lábios
por uma vez te ter beijado.
asa
ass

05 março 2007

nova raiva


asss
asas
asas
asa
as
aass
asas
houve quem me quis dizer que num dos meus voos me apaixonei
e chorei de lágrimas quentes por todo o meu corpo,
molhando-me achado pelo voo
e pelo corpo que no meu se meteu
desde o início.

e não paro de escrever nesta emoção aviadora
que é a nova raiva dos meus pulmões.
asas
secreta e de pavilhão
é um laser em chafariz num vaivém de curvas
que depois se instala num tépido fumo de frutas.
aasa

03 março 2007

arroz de forno

eu tenho a vigília, a vigília toda das escadas que ficaram gastas com os passos dos meus avôs e das minhas avós. tenho sobre a varanda três vasos de brincos de princesa que depois de os ter nas mãos lhes tiro a cor sobre um tiro nos cabelos. ficávamos depois olhando umas alminhas num altar pequeno e descíamos o caminho de terra e de pedra correndo com as oliveiras ao lado. carregadas de azeitonas, mais tarde estivemos a abaná-las num fim de tarde de inverno. fazia frio e o kispo verde-tropa que eu trazia era do meu pai que vinha na mala do ultramar. eu tenho a vigília que é a vigia do meu solar nocturno, do que me tira o travesseiro da cama e do que me acorda com os choros dos bébés nuns metros quadrados acima dos meus. não posso guardar memória disto, porque isto não tem sol vermelho nem existência que para aqui interesse. guardo uma broa cozida num forno de pedra e todos os campos de hortelãs que depois eram metidas nas panelas de três pés. com o passar do tempo, o forno passou a ser pós-moderno, mas sempre com um vestígio de escuro e de preguiceira. agora não está lá nada. existe a chaminé que precisou de descer sobre a cozinha, porque os olhos não conseguiam ver com tanto fumo por entre as salas. o papel de parede descolava-se, mas mesmo assim sempre foi castanho e com desenhos de flores que até agora nunca soube quais. na porta, um pau grosso segura a fechadura mas já mais ninguém o segura, morreram os avôs e as avós e as aves já não têm vozes. descíamos um penedo e imaginávamos um baloiço por entre os figos. as mulheres lavavam roupa num tanque que não era comunitário, era só dali, dali e daquela seara que era a das oliveiras. o tanque por debaixo da figueira costumava ser fresco e enquanto os diques medievais davam de beber ao milho íamos debicando os cachos de uvas, quase que eram gotas de chuva em açucar e depois metiam-se num lagar que só com a adolescência podia ser pisado. quanto a hoje, a filha solteira que morreu de desgosto de amor mudou de casa. tem um apartamento, um T1 e bem no meio do sítio que lhe viu as tripas crescerem por entre as molhes de palha e os coelhos. a outra que mais tarde veio para a capital tem um rumo que desconhece avanços, mas pelo menos já não se preocupa com as oliveiras que possam não deixar cair azeitonas. mas contudo sabia bem abrir assim ao meio, com as maõs, um pêssego peludo e comê-lo de repente depois da missa. não interessava se era preciso ir à missa, tinha-se um luto escorrido pelo pescoço que devia marcar presença, não vá a vizinha do lado chamar a atenção e apontar o dedo à infame. rachei a cabeça duas vezes descendo aquelas escadas. numa das vezes estatelei os olhos no meio do comedouro dos porcos. noutra, brincava no portão e as primas afligiram-se com a perda de sentidos. não recuperei consciência desde aí. tive a ilusão de que o sabor das amoras silvestres me pudesse fazer voltar ao portão onde por entre as cerejeiras brinquei às casinhas. tudo passou. desde o jogo das lojas, até às idas ao centro comercial que entretanto abrira e que só fazia parar o trânsito aos domingos. depois, chegaram os estádios com nomes de presidentes de câmara que em directo na tv dizem palavrões. fiz a vontade ao avô que me falava da segunda guerra mundial e da fome. estive sentado na cadeira esperando por quinhentos escudos se conseguisse estar quieto num período de cinco minutos. mas agora já mais ninguém joga aos quinhentos escudos. a casa é vazia. como começou a ser aliás desde os almoços sem bancos no pátio e já ninguém aquece a água ao sol para depois se lavar. as aranhas podem todas agora viver felizes e sem medo das crianças. é possível agora ter sempre fechada a porta do lavatório. as árvores não vão ter mais pernas para subir. e as avós não vão dizer que subir às oliveiras faz mal ao período das raparigas. as videiras deixaram de ter autor.
sasasa

(cerletti vestido de branco)

o doutor cerletti gostava de dar choques no cérebro,
“vamos lá”, dizia cerletti ligando o aparelho
e o homem meio a sorrir perguntava o que lhe tinha acontecido.
já não são precisos os psicanalistas: a convulsão
é uma questão de electricidade,
não tem nada a ver com as necessidades para o vazio,
basta de poesias que ninguém entende.
o doutor cerletti diz que a convulsão pode ser ligada à tomada
e ficar assim coberta de branco para vitrine e nobel
porque se é mental é para ser racional.

02 março 2007

a mulher que apetece amar

asas
ela diz "quando descia via um casal a beijar-se no banco do metro e queria que aquele beijo fosse meu. Enfim, vamos esperar que amanhã seja melhor."
assa
ele diz "querias um beijo no metro, assim com viagens a dois por estradas e túneis e todo um mundo por descobrir? Olha, eu também. Mas quanto mais não seja sorri-se pelo bem estar alheio, sem egoísmo que só faz mal. Quero que beijes todos os rostos como uma facilidade do ar que respiras, pois por agora é só isso que vale. Terás sempre um daqueles beijos gigantes e com os olhos de um gato sobre os ombros."
asas
ela diz "pelo silêncio...hum...estás em viagem, acertei?"
ass
ele diz " não, estou aqui, mas perdido no meio do trajecto da viagem, no meio da dúvida, no meio do vício talvez e de todas as músicas que sopram quedas de lágrimas sem destino. Estou vendo as cidades rodando nos pneus que rolam como cantos de vozes em coros fechadas. Mas cá estamos."
asas
ela diz "e estamos muito bem. Um dia ainda vamos olhar para estes movimentos e rir com toda esta orientação desorientada. E tudo será menos sofrido...Já te disse hoje que gosto de ti?"
asas
ele diz " não, mas nem sempre as palavras ditas têm de ser as correctas. Correcto é mais um sentir indizível, como aquele que sinto que te tenho. Fazes trazer um cintilante que quase mais ninguém traz, tu tens olhar que deseja olhar de perto. Só lamento que seja sofrendo que por agora tu te vejas, pois por mim não é isso que vejo. Vejo sempre uma espécie de promessa de segurança e de protecção que quero ser capaz de acompanhar e de seguir. Quero que vindo do meu fundo te tornes feliz, satisfeita com a vida e com o amor. Com tudo o que de tenso mas de completo ele te possa trazer. Gosto de ti e hoje é que não disse eu. Em última estância tenho um conforto que até agora, quase com trinta anos, não tinha.
asas
mas o que ele disse a seguir foi "numa próxima vez manda-me só ir à merda. É que eu já sei o caminho."
ass

01 março 2007

(a arte da fuga: fuga de contrapontos melódicos)






asa

eu não estaria a partir-me todo por dentro
se no enunciado do meu diário tu estivesses sobre um branco
que completasse este indizível. há correntes sobre este
impossível nomear,
assa
há inspirações que não podem estar numa receita ao jantar
há nocturnos felinos procurando fugas
e as partes restantes da humanidade.
asas
fico portanto nesta limpeza do rosto por te ter olhado
e bebo todas as cidadanias do teu inanimado verso
que de noite me encolhe e resguarda. terei uma legião inteira
à espera da tua volta
avisando-me do teu brusco chegar

e respirando sobre cada um dos teus clássicos intervalos.

estou tão contente por finalmente nenhum milímetro de ti
ser a régua dos meus blocos de notas.

não tenho na verdade horizontes de natal nem de princípio
muito menos de suficiente coragem. mas cumulo poemas
sem que te apercebas das alterações do clima
asas
e de toda a natureza.
asas
é assim que toda a independência dos objectos é literária
e que sobre a sua negação reside o incêndio
desta dupla resignação: tu tens vontade de poder
as
enquanto eu vou enchendo os campos de girassóis.
asas