16 novembro 2014

Céu gelado (para não dizer coração partido)



 

A mim, num dia entre tantos,
uma luz avistou-me num céu gelado.
Já tarde
eu não soube mais o que depois fizera.
Se a mão dos deuses descera
eu pensei esperar.
O meu tormento – ou aquilo que o julgara –
foi como um amigo estranho
que contigo fala
e como um ácido desaparece.
Olhando as atmosferas da luz
eu retomei lentamente o seu curso,
vogando na estreiteza das cores
a desejada sombra achada pelo frio. 

(egon schiele)

12 março 2014

As nascentes (só os átomos são imortais)
















Demasiadas vezes contas esse teu fruto
um dia perdido
e depois achado na boca.
Havia passado um mês contigo na cabeça.
Fiz-me às ervas
e decidi colocar-te a mão o mais perto que fosse
de ti.
O mês inteiro por fim chegou
“novembro aqui outra vez”
e dilacerei uma família em cujos milénios
repousavam as feridas imberbes de um menino.
Fosse o sol menos escuro durante todo aquele mês
e eu talvez visse como nas direcções da rua
era o teu trajecto que a casa me levava,
mais ninguém ou nada.
O vício da entrega teve a ver com a solidão da mão,
aquela que por perto se pôs
e  muitas facécias disfarçava enquanto ao meio ia dar,
a ti, à pedra, ao princípio.
A coragem de um enterro não vale para uma mão inquieta.
Ela soerguia lentamente os dedos
como passos na rede estrelar do teu queixo.
Eu vi um traço, digo. Eu vi o traço de fugida que foi de surpresa
ver-te a rir,
e da minha mão todos os sons da terra bateram.
Fui à tua morte,
o princípio do silêncio que me puxara a corda
e escolhi exactamente o sítio para de frente me ver.
Quem morrera de facto?
As tentações do corpo, do amor, da sombra
são as nascentes. 

(fotografia de Peter Keetman)

28 fevereiro 2014

O senhor zangão e a sua varanda (ao L.S.)
















À varanda
o senhor zangão equilibra os pés.
Abriu as cortinas do peito
para melhor ver as estrelas,
e numa quieta e fria noite de inverno
pensa sobre os assuntos passados
da sua enorme experiência.

A grandeza do senhor zangão
é menor do que as estrelas que vê,
mas da sua varanda sobre o rio
ele observa a neblina da memória
enquanto o horizonte à sua frente se expande
naquela sua imaginação de ser maior.

O problema com que o senhor zangão se depara
é um problema pouco contemporâneo,
pelo menos dentro da cabeça do senhor zangão.
Há uma origem, um estilo, uma base
aquele brasão que a toda a hora ele segura,
e sem qualquer outra razão que a sua
ele dirá da luz que o mundo não sabe
por entre as trevas do tempo em que vive.

Ele é total e distante, um monárquico,
uma massa que se mistura com a própria vida.
E se num texto de agora o ouvíssemos falar
de nenhuma palavra nos haveríamos esquecer.    

(fotografia de Shomei Tomatsu)

07 setembro 2013

O poema que rola de uma colina a baixo (exercício de presunção estética)














I.
Eu tenho compressas entre as mãos
que são de um amor tão distante quanto
aquela primeira pedra da voz.
É bastante casual esta associação
que meio sozinho o poema faz
entre um amor atado por mãos dobradas
e feridas.
Só por isso, nem este poema devia ser escrito
porque não há conclusão de cuja premissa
tu e eu já não a saibamos.
Mas ele diz-me que entre as duas línguas da escrita
há um arame
e que por detrás dessa desfocada linha
a palavra não pode ser a estética
que o poema e a experiência lhe antecede.
Eu fico suspenso, se não parado.
Vejo fotografias de rostos passados
em cujas linhas houve uma mão e um poema
que à minha frente mos soube dispor.
Os saberes inclinam-se perante essa força móvel
que nos dizem ser a experiência
e eu não sei se o poema é qualquer coisa em si mesma.

II.
As mãos compressas arrastam os meus dias longos.
Isto podia expressar um clamor estrutural e como num modelo
o poema surgiria como a vida.
Esta seria a estética desejável,
não aquela que submete a vida à forma,
antes a qualidade das coisas
à forma viva que daí é vivida.
Menos para mim,
em que os desígnios são seguidos
como réplicas de literatura e ciência
e toda a melancolia parece supor um esforço
que é como num cristal que deixa de ser melancólico.

III.
Paro e atravesso uma das ruas que me enfrenta,
é só passar.
Mas paro e levanto um pé de cada vez
como se isso fosse um interlúdio do ator
e dos murmurantes que restam na passagem.
Vivo por entre as árvores que se agonizam no inverno
e delas não faço qualquer ideia.
Enquanto se recebe um rosto que passa
perde-se a figura relâmpago que o cruzou.
É um modo de trocar
de fazer e sofrer a experiência de viver,
e como em tudo isso é a estética subindo
intraduzível em qualquer verbo.

IV.
Foi o poema que ligou as compressas
e não as mãos por si ou por um amor
de cujo organismo vivo elas pudessem curar-se.
Foi demasiado tarde toda aquela passagem na rua
entre quem pára dá e recebe,
e foi só esperar crescer durante as vidas que passaram vivas
e crescentes.
Isto podia ser a tradução prática de uma dor,
que é aquela que me liga aos objetos.
Num passar de ritmos e outros cursos há paragens
e insignificantes coisas que o poema anima
e corta. 

(Fotografia de Shomei Tomatsu)

23 agosto 2013

Das alvuras, ou “a melancolia das malas” (subtítulo emprestado de J. Cortázar)


















Fui atrás, por um dia ou dois,
(era Verão, como agora)
daquela cor bamboleante
que flutua numa nuvem encarnada.
O cair lunar, nesse dia ou dois,
foi para sacudir a palavra vaga e rastejante
da minha ténue espertina.
Voltei na sombra e no cansaço da vaga,
como na chegada a um ventre,
respirando-a com toda a força.
E entre a palavra azul da praia
repeti inúmero esse verbo à solta que é perguntar.
Roubei estâncias a um futuro da mão,
vestígios de textos incapaz de ler ou escrever.
Na procura
tudo é definitivamente lixo.

12 agosto 2013

Requerimento para existir II (ou a tomada de consciência de K., em Der Prozess)

















Ele pode compreender todas as coisas
mas isso não significa que as interprete
à luz das formas e dos escritos.
Um homem esperou até morrer,
e ele, enquanto morria num sulco achado nas pedras,
ainda sentiu horizontar alguém
numa janela em frente diante de si.

Saber que se vai morrer é diferente,
mesmo num qualquer sentido literário da peça.
Ao saber que iria morrer, como ele, isso tornou-o inocente,
e quem o levara à morte
mais não fez do que num oceano parado
levá-lo a pintar um quadro de cavalos iluminados.

Ele foi seco e obstinado sem razão de o haver ser,
e porém
todas as culpas recaem na liturgia das sombras,
paralelas desde o levantar da cama.

A tomada de consciência do Processo acontece
naquele pequeno sulco,
fora de todos os púlpitos. Não foi desistência,
muito menos astúcia.
Foi morrer como em casa e no trabalho,
a pena que diariamente lhe acontecia,
ausente de um descanso à espera.