29 julho 2013

Proust e o deserto (por volta de 1978)


















Proust encontrava-se numa outra direcção quando chegou ao deserto. Não a direcção de um troço ou de uma rota inscrita em si. Era a direcção que o próprio deserto tomara quando pela primeira vez o viu chegar. Então seguiu, ciente da passagem que lhe pesava a sombra, cerrando os olhos de cada vez que a oblíqua luz do sol se enevoava no ar. Entretanto, recordava-se de um sonho passado algures entre uma fronteira, com montanhosas pedras de ambos os lados. O barqueiro, que de um dos lados lhe acenara, alardeava o corpo entre seduções e melopeias descendentes. Proust percebeu, no seu próprio sonho, que desse lado da fronteira o barqueiro conflagrava entre as sombras e os lugares em aberto nas montanhosas pedras. Era um sonho, muito embora aparentemente simbólico dentro da maneira de Proust pensar enquanto sonhava. Do outro lado imaginava um oposto, um corpo cujo balanço captasse as formas vivas do seu desejo. Mas desse outro lado, sem paralelo, avistara uma linha recta, um imenso espaço ligeiramente avermelhado e sem nada. Este lado, pensou para si durante o sonho, não parece ter princípio nem fim. Mas isso, essa visão, não o deixara sossegado. Ele vira no sonho como podem dois opostos nada opor entre si, e desacreditou-se da dialéctica. Levantava agora a cabeça e a luz branca do sol em cima continuava a cegar-lhe os passos. No deserto Proust perdia com frequência o sentido da razão, porém continuaria a caminhar pela realidade fora.

(fotografia de Peter Keetman, 1953)

11 julho 2013

Preciso recuperar o fogo enquanto o meu computador arranca



















Em quantas línguas se traduz
a parte do sangue que não corre
e repassa só, baixinho?
Não te vás assim, ó sangue,
sem a mim me levares à voz quente
dos entornos,
e se existir apenas um só modo de ma mostrares
eu aceito viver essa onda.