06 julho 2010

Ou um par à minha frente desfeito


Pôs um colar que toda gente menos eu
perceberia que era prata, e ali demiúrgico
era o colar de todos. Eu devia saber falar
sobre as novas cartas portuguesas,
mas o meu olhar desfeito era o seu princípio

«tão momentaneamente importante»

que a mim, embarcando no seu declínio,
me tomou de contramão,
para não falar do jipe parado sobre o passeio
que nos abispenhava o sol
e os demais entardeceres.
Começara assim a história dos que querem
falar dos seus antepassados amantes,
entre imaginações narrativas
que só o cérebro descalça de cada vez que com outro
se encontra,

«é uma merda a arte contemporânea»

mas fez-nos pensar entre a entre-aberta janela
daquela segunda-feira em que o teu colar
era de prata,
a imensidade da qual o tiraste
para sermos a literatura de umas cartas que nunca escrevemos,
ali sonoras.

02 junho 2010

Ou O caso real da escritora que dançava danças de salão


Ela sempre dera valor à vida,
era uma mulher de emoções,
sentia-se uma mulher completa.

Era uma outra mulher que se tinha à frente,
de certeza que iríamos gostar da mulher que dizia
«dançar é dos melhores exercícios que existem»,
mesmo que as lágrimas já não fossem só palavras
como a escrita egoísta que ela dizia que tinha -
uma vida íntima que lhe permitia unir
os separados mundos da sua identidade.

Ela sempre se quis interessar por tudo,
mas a dança era perecível,
e nunca fora discriminada por ser uma escritora
que dançava danças de salão -
ela preza muito a sua liberdade.

Dos seus olhos nascia aquela fé constante
nos leitores, amigos ou simplesmente felizes
um pequeno grupo de jovens talentosos
que enriquecia a vida portuguesa.

29 maio 2010

Ou Neil Young


Começa pela maneira discreta de cantar,
segue-se uma visita ao outro lado da voz -
acendemos cigarros, amanhã ainda é dia de te voltar a ver
...aqui,
um poema diverso
vem ao estilo neil young
e tudo por causa do termo young, aquela arte
contrária à técnica de por a voz que não se tem

é uma sinceridade procurar-te,

menos turva em relação à adolescência de te ver na praia
mas é sombria.
Dizes-me «--------------» (eu a desejar contar-te aqui),
é na verdade um espaço em branco
um fascínio diferente matizado pelo tempo
como se o tivesse posto à venda,
à espera de ver nascer a mesma rima
e um fado barroco a chegar-me de parte incerta,
como é costume. Ocupo-te um lugar estranho
que não faz rimar young comigo
(tudo tão pop no mundo)
mesmo que da rua fujas
e entre as enigmáticas vozes me encontres na opalina dor
...de mim,
a cantar de novo.

12 maio 2010

Ou primeira vez
















Deixaste-me na pele uma rota
desenhada pela tua - tão menos obscura,
agora que a violência nua deste poema
é o seu traço. Hoje essa rota é estar em ti
porque me lembro dela em mim: tão arriscada
fora a sombra, como se o mistério
mais não fosse ter-te ao pé de mim,
ver o que já tinha visto. Mas a voz era esse fio
no qual caí, suspenso por um braço
que de noite me rendia o ar e no regresso
me trazia outra pessoa. Deixaste-me essa rota
inscrita em prosa, cheia de vida num lugar
depois levada por um rio,
tão plena no seu percurso.

11 maio 2010

My healing friend


(para Ana Luísa Amaral)


Curar com as mãos
em absoluto silêncio -
it's wonderful, ele diz
all my happiness está em passar o túnel
nunca como antes eu quis isto aaaamudar
dar um passo sem ver a terra
embrulhar-me, desistir ou aprender,
que o tempo seja

Ele diz-me isto em absoluta mudez,
he's the greatest não porque o poema
o diz, é a cat power a soar na coluna
no meio da soltura verbal
e o café entardecendo

Em matéria de curas somos sinais voláteis -
crises como peixes em cardume,
só falsamente sozinhos. Por isso, ele traz umas luvas
de escamas que abandona na mesa
e começa a discorrer (e eu ali parado vindo
das conexões ocultas que lhe devolvi em livro)

Não via o meu amigo há imenso,
metade de um ano não chega:
it was an empty shell, o meu verão
o meu luto.

10 maio 2010

2003
















Podia morrer aqui -
à boca de casa, um animal inteiro
atravessado de espinhas
e de insectos,
um vale dormente, uma chuva.
Tenho a porta presa ao chão: não quero o risco
de querer sair e de novo andar por esses sítios
de arpoantes voos - uma outra casa
que mesmo assim longínqua
me conhece e comigo acorda.

23 abril 2010

7.7.2007
















Inclinas esse canto da boca
como um quadrado em transe.

Perdes cada um dos lados,
ou deixo cair as linhas rectas
entre o nosso olhar de cítara.

Fechas as mãos
naquela pausa dos assuntos honestos,
enquanto eu me distraio com o pequeníssimo bailado na cortina.

À condenação que se nos impôs
oferecemos estes dois corpos,
moles de geometria,
trazendo as areias de banhos outrora doces
gemendo de parir palavras.

24 março 2010

Sem título













Sinto-a chegar,
a mania vem calada, sorrateira,
primaveril e sozinha como uma lagarta
escondida. As manias não despegam,
mas enquanto laboram ficam tão normais,
querem ir morrer de manhãzinha. Eu vivo contra a mão,
contra o peito e contra a boca
e contrario a forma e o inferno,
eu sei que tento.

23 fevereiro 2010

Ou a natureza


Era no meu vinho que eu estava a pensar desde o princípio.
O resto foi descoser histórias, repetindo-as, entre os lugares do Verão.
A idade moderna deixa-nos fazer isto mais vezes, descoser o verão;
são contudo menos as vezes pelas quais pensamos no vinho.
Mas acontecem três coisas: o doce assobio da infância, o segredo descoberto,
a descida até às mãos vagas. Quis pensar no vinho vinte e três vezes,
entre a consciência e o romance, mas as razões práticas do seu sabor
vieram avisar-me de qualquer coisa pessoal e animal. Ora,
que Fevereiro este: veio para nos querer repetir a idade de outrora,
devem ser as saudades. A melhor tradução disso talvez sejam as horas,
não as vermos, só que o seu efeito é rotativo. Bebamos do físico miar
da volta ao mundo, ali enquanto voltamos à bebida,
e dos prazeres esquecidos um problema de novo perdido.

04 janeiro 2010

Ou um mês

















Foi muito púrpura ver-te sorrir no meio
dos armários vintage
e dos copos alface de onde nos vinham
as maçãs e o açucar. Foi muito elegante
tudo o resto, antes sequer de ter acabado:
eu pensei que só se nascia uma vez.
Vamos por partes, tu um esquema que ainda guardo
como se fosse a primeira nave
que desceu na lua - como se vê, a tender
para o infinito - uma hora que foi realmente
urbana para mim. Eu passo muito tempo
a pensar se sou moderno, nós éramos uma cor,
eu pensei que só se nascia uma vez.
Aquela sobriedade do Porto foi muito labial
no sentido em que tocaste cada um dos degraus
da eterna música, que já não é som
é arquitectura, é carne, vírus.
Foi muito felino tudo aquilo que o resto fez,
rompem os tambores e pouco interesse há
em distinguir se viemos hoje,
por isso eu pensei que podia nascer outra vez
em dois sítios só, ou num só.

Ou dos que vigiam

Eles andam atrás dos gaiteiros,
dos que andam à cata de álcool entre a meia-noite
e as sete.
E é tudo bastante triste, é suposto que a madrugada
seja um enorme g onde todos os vícios caibam:
diz-me porquê? Passam os senhores da lei
e as viaturas abrandam enquanto lá dentro
há um corpo que se desterra, as tuas mãos
o meu ventre agoniado, é como se agora e para sempre
estivesse na nonagésima página de um cigarro
que é este texto,
e durante ti Janeiro implodisse concretamente.
Eles dizem ler o aviso,
está tarde, faz frio, vão para casa que este vinho
não é de beber: malditos gaiteiros que chegam às desoras.
Não se explica esta coisa de o coração vigorar
porquanto a vigia que o nota,
são cem os alfabetos que pela noite batem
e a velocidade que a rua traça. E falam
por causa dos estranhos que conhecem às escuras,
como se esperassem que nenhum outro
os detivesse pela sombra, fazem-se eleitos
pregando truques à miséria que os recolhe.