23 junho 2011

A criação da véspera (ou de como chegar a Roma)

I. A véspera em si

Na véspera de ir para Roma
ela não encontra o soutien certo.
Roma esteve sempre aqui,
antes dos solstícios e de o norte descer à terra.
Imaginemos que ela leva aquele soutien certo
mas que se perde antes de chegar a Roma.
Às mulheres de Roma vendiam-se soutiens d'ouro,
e já lá estavam antes dos solstícios.
Estes solstícios de agora mais parecem varejas do que turismo,
fazem barulho e depressa vão por onde chegam.
O soutien certo é um dado relevante
sobretudo para contornar a simples tentação do ócio
que vai ser Roma.

II. A homeopatia que pode ser Roma

Na véspera de ir para Roma
ela sabe como pedir uma mesa para dois.
É algo de sensual,
apesar de se abespinhar com a falta de reservas.
Um confronto com as leis da justiça acontece depois,
porque de Roma ela irá trazer o seu coração vago
para um determinado português.
Giotto, Caravaggio, vino rosso e rimas espontâneas
farão parte desse seu destino feminino.
Ela não pode dizer na véspera
que amanhã será assim, assim e assim.
Quando muito, ela vai partir de uma ressonância,
de um sonho que lhe foi dado
e o resto é trabalho, ou seja, aquele soutien.
Em Roma há um requisito importante
que é o itálico,
uma elegância diferente, e contudo desejada.
Um humanismo precisa de qualquer coisa aventureira,
como ela,
mesmo que de cor se saibam os nomes dos baptistérios.
Roma é um incêndio,
não só romano, mas litúrgico.
Relativamente a isto, a escolha do soutien
continua a ser para ela um fenómeno de viagem.

III. Do investimento dela

Na véspera de ir para Roma
o plano é uma obra.
Não se pode deitar um fósforo a Roma.
Tudo o que Roma é
é uma mensagem do género vem comigo conhecer a natureza.
Para tudo isso pode ser preciso falar italiano,
aprender duas vezes a ver Visconti
num filme de Luca Guadagnino.
Mas é distinto planear Roma
num solstício português de crise
e sem dinheiro para um soutien de loja.
Ela vai, é outra coisa ter lá chegado.
A minha Europa, ela diz, são os países
nos quais eu por ano passaria quatro meses.
As coisas desagradáveis do seu plano,
isto é, chegar a Roma,
não serão nunca como a deterioração do amor.

14 junho 2011

O homem que queria chegar aonde as Nereides chegam


Era do tipo ter chegado à poesia há um ano.
Enquanto isso
andava nos dicionários à procura de nomes
em dias de chuva.
Ele tinha um plano de intenções. Se o ouvíssemos falar
naquele seu tom sereno e ponderado,
se o observássemos agora,
ele mesmo não teria duvidado de tal.
Em nenhum dicionário teria visto aquela palavra
cujo significado - antes de o achar poético -
lhe dissesse o tempo.
Na primeira fila dos recitais cruzava as pernas,
e enviava sem querer olhares suspensos
às mulheres poetas à sua frente.

03 junho 2011

"Fica com a felicidade, deixa-me o tédio"





















A senhora de Guermantes prefere dizer cultura com K,
mas isso é só o espírito hereditário da família
que por si fala.
A senhora de Guermantes pode assinar Guermantes-Guermantes,
e aquele hífen não tem nada a ver com espírito hereditário,
mas é de família.
A senhora de Guermantes só diz palavras feias depois do francês,
mas isso é porque em alemão ninguém a entende:
"Kkkkulture", ela diz no meio de artistas e actrizes.
A senhora de Guermantes é um mistério muito exacto,
mas a burguesia dos tempos adula divindades anónimas
que têm hífenes no meio do nome.
A senhora de Guermantes já não gosta de vestidos vermelhos,
e chama de "pequeno" um amigo de outrora enquanto desfila
num teatro de velhos.
A senhora de Guermantes, perdida no tempo, regressa das ondas
mas isso é só o espírito hereditário do tédio
que por si cavalga.