20 abril 2007

O Corcunda e a Seringa

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ass
A tua face é picotada, estou a vê-la agora mesmo ao lado da toalha de plástico sobre a mesa: tínhamos acabado de ir às uvas. Aos ombros o gigo curvou-te as costas, muitos cachos para trazer para cima, alguns debicados em cima da mesa, outros já podres. Quase ninguém gostava de separar as uvas boas das uvas podres, imaginávamos que dessem sempre bom vinho, daquele que se oferece aos primos e aos netos. Custava subir e descer a terra batida, mas isso fazias tu quase sempre com os cabelos sobre as arcadas dos olhos, ajudavam-te o silêncio, aquela tua concentração de jovem adulto viciado. Talvez por isso não falasses muito. Estarias se calhar pedrado, ressacando algum segredo, terias telefonado às escondidas dos pais para lisboa a saber onde andavam os amigos. Recordo-me de ti adolescente, abanando-se ao vento por causa dos teus dois metros de altura. Do quarto mais pequeno da casa, de onde se podia espreitar pelo vidro partido da porta, estavas tu mais as cassetes, estarias tu e o que não terias ali, tinhas saudades de uma boa cerveja ao fim da tarde ou de um charro pela noite adentro. Talvez por isso não falasses muito. Acreditávamos depois que era preciso rezar de vez em quando. Aos domingos, pelas oito, cobríamos a ponta do nariz com frio e fazíamos de conta que dormíamos para não nos levantarmos para a missa. Custava saltar para a igreja, nunca vimos nisso grande gozo. Sabia muito melhor não fazer nada, só uns desenhos talvez sobre o banco grande de madeira. Dizias assim para dentro “gostava de ir-me embora, gostava de ser mais gordo” e nós percebíamos isso a sair entre a linha da tua quase sempre fechada boca. O teu lábio de cima era como um fio de um cabelo, sopravas constantemente para um dos lados da repa que te incomodava a testa e de vez em quando puxavas a calças para cima. Eras desajeitado, mas isso não devia ter-te matado. Escolheste uma seringa a meio da madrugada para por fim ao desarranjo. Se tivesses ido ao psiquiatra dir-te-ia ele assim “o senhor sofre de peso do desarranjo, mas tem cura, não se preocupe.” Mas não foste ao psiquiatra, já saberias talvez que eras um daqueles jovens acorrentados à parede que assim ficavam para desgosto da família. E tu lias muito, sabias que era assim que antes os loucos sofriam. Quiseste outra coisa, meter a solidão toda numa mensagem de telemóvel nunca enviada, sufocar apertando o pescoço a fazer de conta, foste até à gaveta da cozinha à procura de um saco para meteres lá a cabeça, pousaste os braços sobre o sofá e misturaste o veneno à luz de um candeeiro público que te entrava pela janela. Melhor este crepúsculo, dirias tu enquanto enfurecias as veias. Nada das uvas te fez parar, nem mesmo os desenhos que fizemos sobre o banco ou as tardes de julho malhando o milho. Pensarias que o prazer havia feito as malas. Não; deves ter pensado que a frustração não é afinal uma coisa tão objectiva como os clínicos dizem. Viste uma pirâmide desfazer-se como uma miragem que se esvanece, viste irmãos de mãos dadas sobre uma barragem de correntes grossas, viste muito provavelmente toda a desrazão desta cidade onde vivias escorrendo-te por entre os dedos, como areia, como folhas picadas de um louro sem cheiro. Sentaste-te então com a noite alaranjada do candeeiro que te iluminava a sala. Sopraste para a colher que te cozeu o veneno e contaste os dias que te fizeram chegar até ali, foram alguns até, pensaste. Tiveste uma dor a subir-te pelo braço, trincavas o fino lábio agora seco e não precisaste de afastar os cabelos que também agora eram já curtos. Estou feio, dizias. Ainda não sou gordo, mas continuo feio. Meteste então tudo para dentro do sangue, melhor assim, melhor contaminar o sangue que nunca me fez saltar, que jamais conseguiu fazer-me falar e sorrir. Tinhas uma cassete dentro do leitor, parada, esperaste que a música terminasse. Lembraste-te da guitarra guardada no armário, no meio das camisolas e dos casacos. Um dia havias de ser uma estrela, digo-te eu. Lembraste-te de um passeio ao porto, junto ao douro, tinhas dito que no porto grandes estrelas surgiam de repente. Mas o porto era o norte e no norte fazia frio e nem sempre as uvas que vínhamos cá buscar eram boas. No norte estavas fora, do norte levavas muito pouco para casa. Os teus pais diziam isso várias vezes. Melhor então acabar com esta crueldade toda do norte e acabares então no meio dos gangs do sul, dos colegas de passe e de tudo isso. Não haveria volta a dar. Já tinhas carta de condução e tudo. Fazias tu a tua vida, penso eu. Imagino assim que te tivesses lembrado de nós com frio, muito aliás. O veneno que tomaste foi para te aquecer a frágil carcaça que ainda vagueava em ti. E quando morreste não soubemos explicar porque razão terias tu morrido, preferimos dizer uns aos outros que estavas doente. Mas não era verdade, não era. Não participaste no que viveste, haverias percebido desde muito cedo que tinhas já construído um vício de vida e que isso era de tua autoria. Daí sim a doença, mas não doença doente. Estiveste para além do que é da ordem do perceptível, morreste e pronto. Tu estarias pronto para isso. E quiseste fazer de conta que até então vivias, nem que fosse por entre os gigos de uvas que em silêncio trouxeste para cima, para a nossa casa. Deixaste mas é pouco testemunho e é por isso que as pessoas choram por dentro quando te lembram. És demasiado jovem, disse eu, quando espetaste a seringa.
asas

4 comentários:

Anónimo disse...

Viva! - R

Anónimo disse...

A Revolução passa sempre
cá por casa.

Mais do que memórias
que explodem com os amigos
numa noite de festa,
ela faz parte
da nossa maneira de estar.

Cá em casa é assim.
Os retratos dos amigos
escorrem pelas paredes
durante o ano inteiro
e nesse dia cada um
recupera a sua imagem revolucionária na intimidade.

Há sempre uma jarra de alegria
a transbordar de cravos
que a minha companheira distribui num gesto artisticamente
desenhado e dançado.

Depois as mãos estendem-se
para que se possam dar
e para que cada um
se abrace ao outro
na grande roda que nos enlouquece ao som dos passos bem marcados
da Grândola e da voz do Zeca
que nos cruza de ponta a ponta
em arrepio ondulatório.

O 25 de Abril
é pois a festa dos amigos
que aprenderam a fazer da vida
uma luta por ervas e por pedras
do caminho dos que são
mais como nós na crença
na verdadeira liberdade.

Vem sempre também
o meu melhor amigo
que o tenho que o ganhei
nalguma revolução feita em quotidianos de sorrisos
e guardo para ele aquele abraço quente que a sangria refresca
e o caldo verde volta a acalmar.

À noite, quando a porta se fecha
pela última vez
e nos deitamos homem e mulher cansados e abraçados,
ainda esvoaçam pétalas vermelhas
de cravos abanados
na consciência de sonhos
renovados em amigos
e música e vinho
aconchegados.-R

Gabriel Mário Dia disse...

Viva. Sobre a revolução ocorre-me uma expressão bem interessante da Arendt, qq coisa como: o revolucionário «radical», após a revolução, torna-se num dos maiores conservadores. Mas pq gosto mais de literatura do que filosofia, o dostoievski vai um bocado mais longe: as pessoas que saem dos limites do «normal», que trazem alguma coisa de novo, têm de ser obrigatoriamente, pela sua natureza, criminosos. Mas há sempre um castigo (como no livro do F.D.). Haverá mesmo?

Anónimo disse...

O que me parece é que o criminoso traz sempre um saco de criatividade às costas. Vai para além do estipulado, do normal. Está sempre para além de qualquer coisa. mata o inerte que é sempre passado; já tinhas pensado nisso? -R