26 junho 2007

numa gelada noite de junho rumo à sibéria

Meia garrafa de vodka pela garganta abaixo. No outro canto da mesa, alguém calcula o peso dessa garrafa, o hábito ao qual tenta fugir a sete pés. Prefere conhaque. Apesar da azia, sempre é um pedaço mais doce. De frente para o jardim povoado de brinquedos, comemos restos de bolos, coisas salgadas e falamos do número sete da selecção portuguesa. Chegam agora os vinhos especiais para molhar os queijos e mais uns copos de água para se ir aguentando o ardor das brancas. É noite, faz frio. Estamos parados debaixo de uma grande varanda com entrada para a aldeia. Devia ser noite de festa, mas há pouco ânimo para festa, já não temos posição nas cadeiras. A festa está ali na fronteira com a embriaguez. É secreta, tem o cheiro do cotão dos casacos velhos, e cada um imagina dançar o que lhe apetece. Vou dizer-te uma coisa: nenhum diálogo é engraçado se feito a partir das teses das gerações. E digo-te ainda agora outra coisa: tenho mais vontade de fazer de conta que participo nas teses das gerações porque tenho medo de ficar de fora. Não consigo perceber por que razão insistimos em falar, digo-te isto a ti. Temos tão pouco a aprender, sempre mais concentrados na explicação das nossas próprias preocupações. Porque pode vir todo o conhaque que tu quiseres, mas depois já não teremos fantasia que chegue para suportar a realidade.
asas

08 junho 2007

é inútil voltar atrás


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havia um homem que dizia
isto é o máximo que
eu consigo odiar

estava cansado de
virar a frase ao contrário
já muito moído de

quase sempre dizer
isto é o mínimo que
eu preciso amar

asas

01 junho 2007

O vendedor de carne


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Desceu a rua quase apressado. Andava a fazer as contas à vida desde a semana passada. Já tinham passado quatro dias desde que visitara a nova moradia. Nos últimos dois não pregou olho. Teve de duplicar a dose de xanax a ver se conseguia ter algum sossego; “é que no dia seguinte é preciso picar o boi”, diz-me arqueando por segundos as sobrancelhas, mas “é um stress, estou parido”, diz em seguida abanando a cabeça com um leve esticão nos ombros. Enquanto descia a rua em direcção à casa da sogra treme-lhe o telefone. Atende com ar de preocupado dizendo que eram já quase oito horas e que o tasco estava fechado. Largando o telefone no bolso das calças vira-se para mim dizendo “já viste estes gajos? Qualquer hora para eles é normal” e digo-lhe eu meio entredentes “pois, é chato”, “é assim, mandam vir meias doses de bovino e eu já lhe disse três vezes hoje que amanhã o fornecedor vai lá com um inteiro. É mais do que o gajo queria, mas ao menos é fresco!”, concluiu já com os olhos fechados e a acelerar o passo. Ele estava praticamente a chegar ao fundo da rua, vai buscar o filho à avó e espera que desta vez o rapaz não faça teima para passar no parque à ida para casa. Durante os últimos dias não anda com paciência nenhuma para o filho. Tem de pensar nas mudanças, saber onde poderá ir buscar uns caixotes de papelão, talvez alugar um espaço para meter lá a tralha. E tudo isto em simultâneo com muito trabalho numa nova empresa. A venda de carne não lhe é propriamente estranha, apesar de já ter feito outras coisas na vida. Do seu currículo profissional constam três grandes campos de actividade: paraquedismo, depois comércio ambulante de bugigangas e finalmente o negócio das carnes. Do primeiro resultou um problema nos ouvidos, zumbidos aos molhes de tempos a tempos. O segundo originou-lhe uma perda de dinheiro razoável, tendo em conta o que investiu a par com um sócio na compra de materiais e tintas para fazer a tal quinquilharia (basicamente bolas de ping-pong, lãs, tecidos e seixos de praia). Do comércio das carnes fica-lhe a dor na coluna causada por todas as horas a carregar porcos e vacas do camião para os talhos, e muitas vezes às cinco, seis ou sete da manhã. Mas foi na área das carnes que realmente atacou, pelo menos já não parece poder ou querer fazer algo diferente. Passou por quatro empresas, todas da área norte do país, e em duas delas teve já a experiência de gerir um sector particular de entregas, mas é um trabalho que exige olho para as comissões e “para vender é preciso saber levar uma pessoa”, lembro-me eu uma vez de o ouvir dizer a alguém ao telefone. Porém, logo agora que o que mais precisava era de tranquilidade para pensar na moradia nova, andava às aranhas com um patrão novo que segundo me diz “berra forte e feio e está sempre todo transpirado”. Ele também tem tendência para falar alto, deve ser um hábito que adquiriu com o tipo de trabalho que tem. Faz os seus negócios no carro, no meio da fúria do trânsito, falando para um telemóvel pousado no tablier de onde frequentemente é possível ouvir-se “não me venhas com merdas” e foda-se ou caralho no meio de “o jarrete de novilho está na mesma em promoção, queres que diga para ir para o Ramiro?” ou “manda vir pernil outra vez!” Por alguma razão a mim me parece que esta combinação de palavras funciona na perfeição. Sorrio abertamente ao sentir o modo como cada uma delas é dita sem qualquer tipo de cerco, são como tiros que pontuam o que é estritamente preciso dizer, e sobem-me pelo corpo como pedras. A crueza da palavra carne cruza-se com palavras que não podem ser outras senão aquelas e deve ser por isso que nem toda a gente conseguiria trabalhar neste ramo. Em todo o caso desculpa-se de vez em quando, brincando com isso, dizendo que nem sempre os clientes falam assim com ele, “é que eles não são universitários, achas?”, e admira-se olhando para mim com aquela expressão de suspeita. Quanto a mim, meio a reboque, lá disse que isso não era bem assim, que todas as palavras fazem parte de um código sócio-discursivo específico que torna a interacção entre as pessoas entendível e todas têm um significado necessário. E ao terminar de dizer isto tomava logo consciência que mais universitário não podia ser. Quase me apetecia bater na boca. Já à porta da sogra ele viu o filho à sua espera. Como é habitual quis correr um pedaço no parque e dar umas corridas com os miúdos que lá andavam. Com as mãos nos bolsos, ia-se irritando com aqueles dez minutos que quase sempre era obrigado a ficar ali a olhar para o filho a brincar. “Ele na escola já não brincou?”, pergunta-me com voz grossa, diria eu que devia ser do catarro de um ex-fumador. Olhava para o relógio e vira-se para a sogra interrogando-a sobre a inquietude do neto, sobre esta coisa de agora os miúdos brincarem quando são horas do jantar e de mais uma vez o casaco do puto ter ficado esquecido no bengaleiro da casa dos avós. Além disso a mulher estava atrasada, para variar, e não lhe apetecia minimamente dar qualquer tipo de adianto ao jantar. Ia tomar banho, abrir uma cervejinha e reordenar a lenha na despensa ou então passar o pano na mota. No próximo fim-de-semana ia para Coimbra, à concentração, e ainda tinha tanto para fazer. Só de se lembrar suspirava. Arregaçando as mangas do pólo cor-de-laranja diz-me “já viste isto? Depois de amanhã vou para Coimbra de mota e o meu puto diz para não ir, que tem medo”, eu acenei com a cabeça sem sentir praticamente nada, “diz que viu um acidente na televisão e que agora o pai também vai ter um”, continuou ainda. Depois de um muito breve silêncio acabo por dizer “a velocidade pode ser perigosa”, mas não tive grande certeza no que disse e ele retoma afirmando que chega a Coimbra em meia hora, sempre a abrir, e que desta vez tem mesmo de ir à concentração dos Motards porque até os Xutos vão lá tocar. É esta associação entre o que precisa fazer e o sentido útil que retira do que faz que mais lhe admiro. Tenho a sensação que poucos sabemos fazer isto assim de um modo tão direito, plano, colocando um tom de seriedade em quase tudo e onde as acções autonomamente se priorizam, como que fazendo parte de uma pirâmide bem rectangular. Enquanto o ouvia dava conta que pensava no modo como o que se quer fazer nem sempre se pode fazer e também na diferença que me parece existir entre o sentido do querer e o sentido do poder. Devo ter falado sem perceber e disse “sabes que para uma criança é complicado” e mais uma vez deu-me vontade de bater na boca. Quando não se encontra nada de jeito para dizer, dizemos quase sempre que é complicado isto e aquilo ou que é preciso dar tempo ao tempo, como se o tempo fosse uma totalidade, uma camada à qual se pode sobrepor outra. Pus apenas uma linha recta nos lábios querendo dar a parecer um sorriso liso de paciência. Os dez minutos passaram e começou a chamar o filho. A sogra estava já dentro de casa e só entre nós podia haver conversa. As luzes da rua acenderam-se e o anoitecer estava com uma estranha névoa salgada, apesar de estarmos num lugar muito distante do mar. “Mas e lá para Agosto? Que fazes?”, resolvi dizer. Descendo um pequeno passeio que havia na rua diz sem para mim olhar que vai para o sul de Espanha e que é melhor o patrão não se por com cenas porque são férias. Ele gosta muito do sul de Espanha, perguntei-lhe se seria por encontrar lá muitos portugueses. Responde-me que são as praias. Porque as férias são sofá e praia. E eu mais uma vez deixo-me seduzir por este sentido de exactidão, esta dura definição dos objectos de prazer, parecendo roçar a pureza, a perícia que é preciso ter para planificar o futuro. A viagem para Espanha irá certamente correr bem uma vez que já tem o carro benzido em Fátima. Eu inclinei o pescoço para o lado direito como que dizendo ainda bem e o puto entretanto chega do parque em frente. Quer fazer mais não sei quê ali ao lado e o pai diz-lhe com aquela espécie de masculinidade irrepreensível que são horas de jantar e que domingo há mais na casa dos avós. Se eu pensar em Portugal penso em domingos gordos e em travessas de carne. Ele começa a vestir o casaco ao miúdo dizendo-me que neste domingo vai estar a ver o concurso da miss t-shirt molhada e pergunta-me se eu também vou de fim-de-semana. O puto começa a correr atrás de um pombo muito pequeno que por ali passa. Fiquei sem responder. Mas em silêncio eu começava mas é a pensar no cruzamento dos domingos com a carne. Em Portugal há talvez carne a mais. Mas este lado carnívoro dá-nos um sentimento de controlo, de possessão, de sentido prático da vida. E o domingo é o festejo das carnes vivas comendo as mortas, são as famílias à volta de uma mesa, sessões domésticas de debate político, portugueses tirando partido de uma parte, querendo firmar uma ideia, armando valores e opiniões. Os portugueses gostam bastante de palavras soltas, das palavras todas, e sobretudo de dizê-las nem que sejam porcas. Será isto uma identidade?, questionei olhando para baixo. Subindo a rua levantou-me a mão em tom de adeus dizendo que tinha um canal à borla da tv cabo e que hoje ia ver um filme que ainda andava no cinema. Eu fiquei com a impressão de não saber muito bem o que fazer nesse dia.
asas