Os debates sobre a IVG estão aí em massa e para as massas: é na tv, no rádio, na net, nas ruas, por todo o lado. Por alguma razão os media servem interesses de massas. Só quem fizer de conta é que não repara na mobilização social em torno do referendo sobre a IVG. É de espantar, realmente. Já agora também seria bom observarmos tal agitação a propósito do fim da guerra. Mas não é isso que está a ser referendado. A mania de inventar outras questões para além daquela que no próximo dia 11 vai a votação faz parte dos queridos defensores do Não. Digo "queridos" porque pelos vistos é assim que gostam de se tratar entre si e os outros (veja-se a fatídica Kátia Guerreiro a dirigir-se a uma jovem do movimento pelo Sim num dos passados prós e contras na rtp). Mas isto não interessa. Que se tratem como bem lhes apetece. O que irrita mesmo é a produção discursiva (e por isso tão retórica) que os Não insistem em levar a cabo. Aspectos como a liberdade de ser mãe, uma vida com felicidade, segurança médica, descriminalização, entre outros, parecem não ter o mínimo interesse para quem tão acerrimamente defende uma espécie de boa nova que é a protecção da vida. Como se, para nós, que vão votar Sim no referendo, a vida não interessasse para coisa alguma. Irrita mesmo é a generalização abusiva de um conjunto de ideias que os senhores e as senhoras do Não consideram inquestionáveis: todas as mulheres nasceram para procriar e reproduzir outros seres; a família é um valor absolutamente incontestável (e família com um pai, mãe e no mínimo dois filhos, de preferência um casalinho); quem aborta merece castigo de prisão, porque não interessa se se desejam crianças ou não: quando surgem sem contar, transformam-se numa espécie de fatalidade que é preciso carregar e por isso é que há as Joanas todas pelo país fora; por fim, quem defende o Não acha que está a defender as mulheres e a tratá-las bem, pois acima de tudo do que elas precisam é de caridade e de subsídios quando uma gravidez aparece sem querer. Não há paciência para tamanha desconfiança. É que não há mesmo. Por que razão as pessoas que não são favoráveis à despenalização da IVG acham-se responsáveis pelas vidas dos outros? Por que razão consideram que é preciso instituir um sistema de moralidade e de costumes a respeito da gravidez e ao abrigo de uma lei que, pelos vistos, nem sequer é aplicada? Quem seremos nós, afinal, para ajuizar uma realidade alheia como seja o desejo de uma mulher - não sabemos qual, nunca a vimos, nunca conversamos com ela - para terminar uma gravidez? A mim, o que me parece, é que a reacção alarmista dos defensores do Não assenta numa vontade de fazer prevalecer uma lógica social de comportamentos que nem mesmo eles sabem qual é. Mas o que interessa é não falar muito do que não tem solução possível, e sobretudo assim em manifestações, com barulho e tudo: se abortou, é porque quecou e, por isso mesmo, a mulher devia mas é estar quietinha. Deste modo, o que está por detrás de toda esta discussão e que é transversal às posições do Sim e do Não (ainda que os protagonistas do Sim já o tenham referido algumas vezes, talvez ainda em número insuficiente) é o problema, e que na nossa sociedade existe, relativamente à vivência da sexualidade. Num artigo recente que li n'O PUBLICO, faz-se o resumo de uma entrevista que foi feita ao antigo Ministro Roberto Carneiro, em Fátima. Olha que bem. Sobre o referendo da IVG, o Roberto diz qualquer coisa como: "nem sei porque se fala tanto neste assunto e porque é que vai a referendo. Olhe, daqui a uns tempos, temos a eutanásia, os casamentos entre homossexuais, e eu sei lá que mais". Fim da citação (que não é transcrita). É justamente neste seu "e eu sei lá que mais" que vemos toda a escuridão onde ainda o pensamento português se encontra. De tanto se falar num mal, ainda se acaba por trazer os amigos. De tanto querer discutir uma coisa, vai-se ficar a não saber coisa nenhuma (raciocínio do ex-ministro). Por isso, vamos lá deixar a sociedade como ela está, pois os modos como nascemos e morremos não são realidades determinadas por nenhum e nenhuma de nós (outra vez raciocínio do ex). Mas, na verdade, esta miscigenação de argumentos - estilo tiro ao alvo a ver o que é que pega - é insuportável. O que é que a IVG tem que ver com a eutanásia ou os gays? A seu tempo, talvez, pode ser que algumas destas questões sejam publicamente discutidas. E qual é o mal? eu vou votar sim: sim: sim: sim: sim! porque esta realidade, este mundo no qual participo, não me tem dado quaisquer motivos para nele poder acreditar. Basta a ideia da alteração dos poderes instituídos, da moral tacanha que ainda é partilhada, para a mim me dar um sentimento de maior felicidade, nem que seja através da simples introdução de alíneas no código penal.
06 fevereiro 2007
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1 comentário:
Pois é, Gabriel, também eu tenho ficado absolutamente estupefacta com algumas das coisas que os defensores do Não têm dito... Mas por mais que nos queiram confundir com afirmações e discursos demagógicos e falsos a única coisa que está em questão é se cada um de nós acha que se deve penalizar e criminalizar uma mulher que abortou.
O que está em discussão hoje, tal como em 1998, não é a bondade ou a maldade da prática do aborto, não é a defesa ou a condenação da interrupção voluntária da gravidez. O que está em discussão hoje, tal como em 1998, é se quem interrompe a gravidez, é se quem sofre o recurso a um aborto, deve ser penalmente incriminada (e nem vou aqui discutir o facto de incriminação ser, nestes casos, um verbo quase sempre conjugado no feminino, como se nós, mulheres, engravidássemos sózinhas e decidíssemos abortar sempre sozinhas...). O Estado, através da lei, permite que quem engravida, por vontade ou sem a ter (e acontece tantas vezes, mesmo quando as mulheres e os homens são informados, tomam precauções, ...), seja mãe e pai. Deve o Estado, através da lei, obrigar alguém a ser mãe ou pai sem o querer ou sem o poder?
E já que os argumentos acabam sempre por cair em posições de apoio ou condenação da prática (como se houvesse alguém, mesmo quem já o fez, que apoie, que ache fantástico, que ache que esta é uma "solução mágica") gostaria só de deixar uma interrogação: decidir ter um filho é o mesmo que tropeçar numa pedra na rua?
É exactamente porque defendo o direito à VIDA que acho que IVG deve ser despenalizada. Porque não confundo VIDA com existência biológica, física...
É porque acho que a gravidez, a maternidade e a paternidade não podem ser vividas como um castigo ("ai não pensaste? Então agora aguenta...") que defendo a despenalização da IVG.
É porque acho que o primeiro direito das crianças é serem desejadas, independentemente desse desejo resultar de um acaso ou de um planeamento, que defendo a despenalização do aborto.
E, sobretudo, porque não me sinto no direito de julgar e emitir juízos de valor sobre as decisões de quem não conheço e por não querer obrigar ninguém a pensar como eu, defendo a despenalização da IVG.
Para que quem quer ter filhos os possa continuar a ter, e para quem não quer não seja obrigado a tê-los.
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