12 dezembro 2011

Escravidão moderna


O senhor disse ao escravo que ele devia ficar
em suspenso.
É uma forma moderna de escravidão
esta de suspender alguém,
e suspendendo sem reforçar o prémio do esforço
– é uma coisa simbólica.
O senhor inventa o delírio para o escravo
suspender o valor do seu trabalho,
para nele ficar o traço de alguém diferente,
dedicado
perto de qualquer coisa impossível.
Então o escravo diz-lhe,
– vou e volto, estarei aqui
(ele não começa a frase por “eu”)
e o senhor,
– tivéssemos nós mais tempo e eu “far-te-ia”
alguém livre.
Pois.
Entre o senhor e o escravo joga-se um tempo
que é de rua,
isto é, negócio.
O escravo sobrevém no mostrador das espécies
figurando o seu próprio elemento,
aquele que o senhor não vai comprar
(e muito menos regatear)
um elemento naquele o senhor se quer tornar.

01 dezembro 2011

Medusas













Ela adormece ao som de Lhasa
enquanto uma cabeça de Caravaggio
se esvai pela boca muda de um destino sem texto –
é habitual haver esse destino
que a todo o instante ela o nega,
e eu depois de anos ressurjo-lhe a cabeça.
Ela – uma alma, uma coisa – é uma vida
entre as outras,
morrer de amor decapitado é uma história passada.
Mas há pessoas que são invernos,
têm esse inverno que é diferente dos outros
e nessa adivinhação em que nos põem
o que sobra é o resto.

26 novembro 2011

O princípio da Noite à excepção de mim


















Tu chamares-me à realidade
é dizeres-me que eu sou lixo.
Eu não sou diferente dessas escadas
que tu sobes semana fim da semana.
Mas tu sobe-las de kispo quente
numa noite que era aquela,
e na qual ecoaria a tua vontade de ciência
com o desastre de ver Bach em cada som
(o barulho que ouvimos os teus pés fazer
ao subir).

Eu vim depois embora depois de um beijo,
tu vais telefonar.

22 outubro 2011

Shumann outorgado













O meu regresso ao estudo fez-se por três fases.
Começou pelo princípio da terra,
e de eu achar que o sol era nosso.
Depois, foi pensar ao contrário.
Antes, o início foi um gole, para lá do resto.
Eu não penso senão em ficar ok com o sol,
mas ele pára-me a veia.
A segunda fase foi diferente,
desenvolveu a crítica e o longo desterrar de um piano só
(eu havia mudado de casa)
e o território das novelas mudou de sítio,
isto é, de autor. Eu queria um conjunto de coisas
e o problema das coisas é incerto.
Num terceiro tempo a água ficou.
E tanto tu como eu sorrimos
numa viagem concreta difícil de dizer.

Obstinação

É poético como não haver mistério –
descalçar a razão é um difícil branco
em tempos de Outono.
Eu vi um verso, mas ele chegou-me tarde.
E agora
o meu princípio é declinar,
menos terreno que a terra, ainda assim.
Apesar disso, é declinar
e eu tenho por princípio respeitar a ordem
do ar diverso.

14 outubro 2011

Orosei















De um ponto de vista de certo modo absoluto
esquecemos hoje aqueles solstícios variados, preexistentes,
gerais, inevitáveis.

23 junho 2011

A criação da véspera (ou de como chegar a Roma)

I. A véspera em si

Na véspera de ir para Roma
ela não encontra o soutien certo.
Roma esteve sempre aqui,
antes dos solstícios e de o norte descer à terra.
Imaginemos que ela leva aquele soutien certo
mas que se perde antes de chegar a Roma.
Às mulheres de Roma vendiam-se soutiens d'ouro,
e já lá estavam antes dos solstícios.
Estes solstícios de agora mais parecem varejas do que turismo,
fazem barulho e depressa vão por onde chegam.
O soutien certo é um dado relevante
sobretudo para contornar a simples tentação do ócio
que vai ser Roma.

II. A homeopatia que pode ser Roma

Na véspera de ir para Roma
ela sabe como pedir uma mesa para dois.
É algo de sensual,
apesar de se abespinhar com a falta de reservas.
Um confronto com as leis da justiça acontece depois,
porque de Roma ela irá trazer o seu coração vago
para um determinado português.
Giotto, Caravaggio, vino rosso e rimas espontâneas
farão parte desse seu destino feminino.
Ela não pode dizer na véspera
que amanhã será assim, assim e assim.
Quando muito, ela vai partir de uma ressonância,
de um sonho que lhe foi dado
e o resto é trabalho, ou seja, aquele soutien.
Em Roma há um requisito importante
que é o itálico,
uma elegância diferente, e contudo desejada.
Um humanismo precisa de qualquer coisa aventureira,
como ela,
mesmo que de cor se saibam os nomes dos baptistérios.
Roma é um incêndio,
não só romano, mas litúrgico.
Relativamente a isto, a escolha do soutien
continua a ser para ela um fenómeno de viagem.

III. Do investimento dela

Na véspera de ir para Roma
o plano é uma obra.
Não se pode deitar um fósforo a Roma.
Tudo o que Roma é
é uma mensagem do género vem comigo conhecer a natureza.
Para tudo isso pode ser preciso falar italiano,
aprender duas vezes a ver Visconti
num filme de Luca Guadagnino.
Mas é distinto planear Roma
num solstício português de crise
e sem dinheiro para um soutien de loja.
Ela vai, é outra coisa ter lá chegado.
A minha Europa, ela diz, são os países
nos quais eu por ano passaria quatro meses.
As coisas desagradáveis do seu plano,
isto é, chegar a Roma,
não serão nunca como a deterioração do amor.

14 junho 2011

O homem que queria chegar aonde as Nereides chegam


Era do tipo ter chegado à poesia há um ano.
Enquanto isso
andava nos dicionários à procura de nomes
em dias de chuva.
Ele tinha um plano de intenções. Se o ouvíssemos falar
naquele seu tom sereno e ponderado,
se o observássemos agora,
ele mesmo não teria duvidado de tal.
Em nenhum dicionário teria visto aquela palavra
cujo significado - antes de o achar poético -
lhe dissesse o tempo.
Na primeira fila dos recitais cruzava as pernas,
e enviava sem querer olhares suspensos
às mulheres poetas à sua frente.

03 junho 2011

"Fica com a felicidade, deixa-me o tédio"





















A senhora de Guermantes prefere dizer cultura com K,
mas isso é só o espírito hereditário da família
que por si fala.
A senhora de Guermantes pode assinar Guermantes-Guermantes,
e aquele hífen não tem nada a ver com espírito hereditário,
mas é de família.
A senhora de Guermantes só diz palavras feias depois do francês,
mas isso é porque em alemão ninguém a entende:
"Kkkkulture", ela diz no meio de artistas e actrizes.
A senhora de Guermantes é um mistério muito exacto,
mas a burguesia dos tempos adula divindades anónimas
que têm hífenes no meio do nome.
A senhora de Guermantes já não gosta de vestidos vermelhos,
e chama de "pequeno" um amigo de outrora enquanto desfila
num teatro de velhos.
A senhora de Guermantes, perdida no tempo, regressa das ondas
mas isso é só o espírito hereditário do tédio
que por si cavalga.

21 março 2011

Topobiografia


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Eu adormeço naquele pensar
em que as coisas são de antes,
talvez fique doente deste modo independente
mas a sensação é distante e furisosa.
A minha nervura - isto é, modo de pensar -
é um gráfico circular
onde as cidades são histórias
e o universo educável.
Falar para um quarto ambiente seria como se para mim falasse
num começo melancólico,
e pedisse desculpa
ao passar pelos lugares que eu sei serem de primeiro espaço.

Ou O despertar da Primavera

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Hoje
a Primavera parece que tocou a todos,
mas a mim, umas horas depois,
tocou-me a Lua.
É 2011,
a Primavera toca a tantos anos assim?
É melhor baixarmos o volume,
e que o último dia do ano
seja como minutos
em que a lua sobre sobre nós se repete
e o resto será apenas, aqui e ali,
em bando talvez,
um horizonte disperso.

12 março 2011

Concerto para violino


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O violino ainda não saiu do chat,
continua aqui
mas não responde.
Chega mais gente por via móvel
e isso irrequieta os protocolos da conversa,
isto é,
da orquestra.
Medem sonatas e ruas inteiras
numa sociedade aberta,
e o violino ainda sem responder.
Se conhecesse o músico por detrás do instrumento
dizia-lhe das boas,
mas entre as siglas que trocam
é difícil entender o que tocam,
isto é,
cada frase da música que fazem.
Ficam perguntas por fazer
(podia ser aquela suspensão de um Vinteuil
que nem sequer nunca existiu, e apesar disso
lemos no Proust e acreditamos que há frases assim)
e tudo porque são mauzinhos com desculpas
que entre músicos se desculpam,
como se uma crazy net just joined the stars together
que naquele concerto tornavam o mundo melhor.

25 fevereiro 2011

Trabalhos Manuais













Aquele poeta está na televisão
e o seu corpo é um edifício de sombras.
Fala sem metáforas sobre a linguagem da metáfora
que é a sua.
É um discurso de linguagem que para ali o põe,
a si e ao seu prémio,
enquanto eu - de pijama de ontem -
enrolo peúgas ao ritmo daquela oração.
E se um poeta lhe dissesse - não haverá melhor metáfora
para em vez de meias enrolar coturnos?

28 janeiro 2011

Pessoas felizes


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Pessoas felizes são pessoas sem vergonha,
conversam à saída da escola enquanto a tarde acaba
(esses teus jeans caem bem).
Mas é segunda-feira, é sempre segunda-feira
neste país de gente mal amada.
São pessoas sem atalhos, pessoas aqui,
a enganar o sol que tu e eu calamos.

21 janeiro 2011

Medo


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É Janeiro por dentro da quieta e lassa manhã
em que me parto -
vemos agora enquanto a sorte é termos o que partir,
caímos por fim em nós. O fim do medo é poético,
uma coisa que dói num coração inteiro.
Atiramo-nos ao chão, isso faz realmente medo,
não é um poema que o salva.

Os mal-tratados

Eram amantes num tempo em que a formação amorosa se levantava do chão e não queria olhar por nós. Estavam a formar um círculo de muitos amantes, em vez de pensarem só nas águas que do outro lado da noite chegavam para os vigiar em silêncio. Então dormiram em paz, para melhor não deixarem passar esse seu aviso em vão. Lutaram contra os sons que em uníssono voltavam das ruas para de novo os levarem à entrada das coisas, quando a tempestade passasse. Foram amantes na verdade sós, irreconhecíveis para ninguém ver, como se lhes tivessem ateado no corpo o fumo de uma existência eterna. Em Novembro tudo seria diferente, tinham a ideia de ver no Inverno uma mudança de prática, de prática real, sobrevoariam os sonhos esquecidos no tempo, e de cujas tréguas uma voz gritava. Esses amantes de um quarto ancilar, terrível só de entrar, esses amantes agora de um palacete reinante, imbuído num hemisfério de rosas silvestres, esses amantes, pergunto, onde estão, que lhes fizeste tu, monstro de um olho só, tentáculo de um só osso entre pássaros de olhos partidos, tu que vinhas de um negro cru e rouco, do princípio de tudo, que lhes fizeste?