26 dezembro 2009

Ou Behrenstrasse

Manhãs, Berlim, que dos olhos não vêem,
isto é ser um pé, é andar de olhos calados:

façamos do pé uma fenda, são cadáveres
as pedras que piso.

Dia um, dia dois, dia três,
tudo antes hoje por agora, que matar pássaros
é só dizer mein gott por cada tiro, mein gott
por cada porta.

Silêncio, que vimos num T1,
eu, tu e muitos mais: é um traçado,
um esquilo, um canhão em alto-mar.

06 novembro 2009

Ou Ainda assim

É por dentro que as imperfeições são
estes buracos ocos
que de tão ocos escondem sombras
divididas secadas por entre
desvios traços. A arte é querer ver por essa
forma, ter um olho tocado pela mão
do tempo
e na sua crença sentir um passo em frente.
Ainda assim mais fácil era ter à mão
aquele caderno a duas linhas
o imperfeito dentro apenas naquele traçado,
infinito
sem destino. Quase tudo é cansativo
perante a obra, é dada já perfeita
em mim nenhuma ideia.

22 outubro 2009

Ou o Leitor à Janela

Sinto-me abraçado às folhas de Outono
um corpo prestes a secar junto à ameaça
das nuvens. Conheço-me, por contraste,
na água fria que escorre das matas,
é quarta-feira, e a pastelaria não abre.
O pequeno centro hoje encolhe-se,
desaparece num indefinido espelho
familiar como sempre no ruído glacial
das marchas. Em casa, chegado da rua,
é como se lhes estivesse a pedir perdão.

15 maio 2009

Ou a busca das folhas


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Cheiras a difíceis troncos de pele,
semeias palidez quando custa acreditar
que dos gatos sejas, dessas suas cores.
Nas alturas em que és difícil sonho contigo
em carrosséis mudos, e no amanhecer dispersos
imagino não ter sonhado coisa alguma,
é de dia. Queira o destino dizer-me isto,
mas que seja como um camelo cego
que em folhas de árvore rosa vê nascer
pássaros verdes.

21 fevereiro 2009

Ou o olhar de uma camélia



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Os nervos redondos desta flor
de dentro queimados, cortados,
largam fogo. Espalham-se em mil partículas,
cuja delicadeza é cada poro
ou o selvagem desvio dos traços uma única vez feito.

Uma a uma, as pontas abrem
guardando dentro a perdida seiva
que no ar se vai. Uma flor assim despida,
pronta para olhar, faz temer as mãos
que difíceis ficam.

E ambos sabemos, a camélia e eu,
que o estado primitivo é sempre o corpo,
este tom, esta visita, este princípio.

15 janeiro 2009

Luxuriante

Meu Caro,
A começar pela sua forte estatura, era de oferecer-lhe um busto de Alexandre, há algo no penteado de ambos que me recorda a Grécia, e depois não me diga que as estátuas ou, enfim, a oferenda de pequenas estatuetas não cola com a minha suposta nobreza que em presentes se quer ver traduzida. Os bustos geralmente eternizam as imagens, a não ser que ocorram terramotos imprevistos — já que as previsões falham sempre algum detalhe — e no seu caso ter-se-ia de pensar numa matéria da cor dos peixes, porque o tom marítimo cai-lhe bem. Começaria pelas orelhas, redondas e com ar bucólico, e depois desceria para o pescoço, apenas ligeiramente rugoso, mas ao mesmo tempo solene e indicativo do peso que os pensamentos têm em si. Avançaríamos em seguida para as faces, cada uma recortada com a identidade que lhe é própria, como quando sorrimos apenas de um dos lados, ou como quando existem determinados traços entre o nariz e a boca que vão variando consoante os diferentes estados de humor. As suas faces não seriam nunca gémeas e, se só existissem três ou quatro traços a esculpir-lhes as formas, eles seriam o espanto, a indignação, a curiosidade e a sensualidade. Chegando à secção do olhar, e sendo o busto apenas de uma cor, de um azul de algum modo esbranquiçado, da cor do gesso, imaginamos a lâmina negra que habita as aves, ou os gatos, ou então as cobras. Mas há também nas borboletas belíssimos estampados de olhos, e há até fotografias de grande pormenor que nos confundem as perspectivas: quando julgamos ser um nó, num tronco de madeira, trata-se afinal de um peculiar ponto de animal. Haveria então aí, nesses olhos de busto, um feixe de antemão criado pelos rupestres, algo que desde as origens sempre esteve gravado nos buracos e que sempre se debateu, ao longo da sua existência, por uma fina procura de luz — seria, portanto, um olhar luminoso. O busto continuaria assim a ser moldado até ao começo do peito, que estaria coberto pela ilusão de um manto, também ele recortado pelas vestes de uma márcia em silêncio, expectante das auroras. Não haveria lugar a membros, e não saberíamos de que substância far-se-iam os dedos; julgaríamos apenas, ou tão-somente, que pedras preciosas e algumas pérolas da cor das cinzas — pois é certo que queimamos o que mais adoramos — estariam algures dentro do coração.