10 fevereiro 2007

o sonho da gata leitora

às vezes, quando faço amor com a simone, é difícil não ser como ela. talvez tenha a tendência para achar que quando se faz amor com a simone seja preciso ser ela ou como ela, os beijos são pequenas trincas e as carícias são como deitar o rosto numa almofada. o que desejo por isso é saber beijar e acariciar assim. depois, e num vaivém muito repetido, a simone deixa-se adormecer com a cabeça presa ao peito, segurando o queixo com as pontas de um dos seus membros mais delicados. acorda, retorce-se, olha em redor, volta a espreguiçar-se e toca levemente o meu nariz com um gemido. abandona-se novamente em mim, permite que passeie os meus dedos pelo seu ventre e conduz-me, de vez em quando, as mãos, aproximando-as da sua boca e dos seus lábios. temos alguma tendência também para nos contemplarmos, imaginarmos talvez o que é que seria de nós se não nos tivéssemos e depois de sedutores passamos a seduzidos em três tempos. gostava de saber se a simone é mais pragmática do que contemplativa: na verdade, ela pode apenas olhar-me em silêncio sem eu nunca saber, perceber ou aceder ao que lhe passa pela mente. e contudo, ela espreita-me muito. no banho, na cama, enquanto cozinho, enquanto trabalho ou leio, quando falo ao telefone ou quando vejo televisão. durante o banho, não sei se estranhamente, é o momento em que me sinto mais constrangido por saber que me espreita. parece decifrar cada contorno do meu corpo, como se interrogasse o que mãos, pés, barriga, cabeça, sexo e pernas quisessem dizer. eu não faço o mesmo. deixo que ela se banhe à vontade. embora goste de olhar também. a simone é muito precisa quando toma banho. demora bastante tempo a terminar o que toma de manhã. à tarde, geralmente, faz pequenas abluções aqui e ali, depois de comer. à noite é mais completa, senta-se e estica a sua língua até ao pescoço, dobra o corpo e rapidamente massaja o abdómen e as costas e suspira entre o trabalho. volta a sentar-se, mas já mais inclinada para um dos lados e estende as suas carícias até à extremidade do seu peso, dá um ligeiro mimo ao rosto e aos olhos e fica a olhar-me. eu curvo-me e deito-me. costumamos ficar assim longas horas. a meio abro um livro e ela pede-me para lhe dizer o que está lá dentro: invento coisas, faço de conta que ela sabe ler e ponho-me a falar sem grandes rodeios. quando trabalho ou escrevo acontece algo diferente. a simone gosta de se empoleirar no meu ombro e fica a fitar o texto a produzir-se, entreolhando o computador e a música que do outro lado da sala vai tocando. ainda não lhe deu para andar vestida em casa, mas eu gosto dela nua. consigo apreciar muito melhor os perfis do seu movimento, encantar-me com o exercício do seu andar e com a honestidade do seu corpo. quando nos pomos a olhar a rua, os prédios ou o mar, a simone dá-me pistas de que é mais contemplativa do que pragmática. diz-me que gostava de deslizar no dorso de uma gaivota e eu digo-lhe que também. é capaz de insistir muito; eu nem tanto. mas a melodia que julga existir no mundo que voa é um bom princípio.

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