07 setembro 2013

O poema que rola de uma colina a baixo (exercício de presunção estética)














I.
Eu tenho compressas entre as mãos
que são de um amor tão distante quanto
aquela primeira pedra da voz.
É bastante casual esta associação
que meio sozinho o poema faz
entre um amor atado por mãos dobradas
e feridas.
Só por isso, nem este poema devia ser escrito
porque não há conclusão de cuja premissa
tu e eu já não a saibamos.
Mas ele diz-me que entre as duas línguas da escrita
há um arame
e que por detrás dessa desfocada linha
a palavra não pode ser a estética
que o poema e a experiência lhe antecede.
Eu fico suspenso, se não parado.
Vejo fotografias de rostos passados
em cujas linhas houve uma mão e um poema
que à minha frente mos soube dispor.
Os saberes inclinam-se perante essa força móvel
que nos dizem ser a experiência
e eu não sei se o poema é qualquer coisa em si mesma.

II.
As mãos compressas arrastam os meus dias longos.
Isto podia expressar um clamor estrutural e como num modelo
o poema surgiria como a vida.
Esta seria a estética desejável,
não aquela que submete a vida à forma,
antes a qualidade das coisas
à forma viva que daí é vivida.
Menos para mim,
em que os desígnios são seguidos
como réplicas de literatura e ciência
e toda a melancolia parece supor um esforço
que é como num cristal que deixa de ser melancólico.

III.
Paro e atravesso uma das ruas que me enfrenta,
é só passar.
Mas paro e levanto um pé de cada vez
como se isso fosse um interlúdio do ator
e dos murmurantes que restam na passagem.
Vivo por entre as árvores que se agonizam no inverno
e delas não faço qualquer ideia.
Enquanto se recebe um rosto que passa
perde-se a figura relâmpago que o cruzou.
É um modo de trocar
de fazer e sofrer a experiência de viver,
e como em tudo isso é a estética subindo
intraduzível em qualquer verbo.

IV.
Foi o poema que ligou as compressas
e não as mãos por si ou por um amor
de cujo organismo vivo elas pudessem curar-se.
Foi demasiado tarde toda aquela passagem na rua
entre quem pára dá e recebe,
e foi só esperar crescer durante as vidas que passaram vivas
e crescentes.
Isto podia ser a tradução prática de uma dor,
que é aquela que me liga aos objetos.
Num passar de ritmos e outros cursos há paragens
e insignificantes coisas que o poema anima
e corta. 

(Fotografia de Shomei Tomatsu)

23 agosto 2013

Das alvuras, ou “a melancolia das malas” (subtítulo emprestado de J. Cortázar)


















Fui atrás, por um dia ou dois,
(era Verão, como agora)
daquela cor bamboleante
que flutua numa nuvem encarnada.
O cair lunar, nesse dia ou dois,
foi para sacudir a palavra vaga e rastejante
da minha ténue espertina.
Voltei na sombra e no cansaço da vaga,
como na chegada a um ventre,
respirando-a com toda a força.
E entre a palavra azul da praia
repeti inúmero esse verbo à solta que é perguntar.
Roubei estâncias a um futuro da mão,
vestígios de textos incapaz de ler ou escrever.
Na procura
tudo é definitivamente lixo.

12 agosto 2013

Requerimento para existir II (ou a tomada de consciência de K., em Der Prozess)

















Ele pode compreender todas as coisas
mas isso não significa que as interprete
à luz das formas e dos escritos.
Um homem esperou até morrer,
e ele, enquanto morria num sulco achado nas pedras,
ainda sentiu horizontar alguém
numa janela em frente diante de si.

Saber que se vai morrer é diferente,
mesmo num qualquer sentido literário da peça.
Ao saber que iria morrer, como ele, isso tornou-o inocente,
e quem o levara à morte
mais não fez do que num oceano parado
levá-lo a pintar um quadro de cavalos iluminados.

Ele foi seco e obstinado sem razão de o haver ser,
e porém
todas as culpas recaem na liturgia das sombras,
paralelas desde o levantar da cama.

A tomada de consciência do Processo acontece
naquele pequeno sulco,
fora de todos os púlpitos. Não foi desistência,
muito menos astúcia.
Foi morrer como em casa e no trabalho,
a pena que diariamente lhe acontecia,
ausente de um descanso à espera.

29 julho 2013

Proust e o deserto (por volta de 1978)


















Proust encontrava-se numa outra direcção quando chegou ao deserto. Não a direcção de um troço ou de uma rota inscrita em si. Era a direcção que o próprio deserto tomara quando pela primeira vez o viu chegar. Então seguiu, ciente da passagem que lhe pesava a sombra, cerrando os olhos de cada vez que a oblíqua luz do sol se enevoava no ar. Entretanto, recordava-se de um sonho passado algures entre uma fronteira, com montanhosas pedras de ambos os lados. O barqueiro, que de um dos lados lhe acenara, alardeava o corpo entre seduções e melopeias descendentes. Proust percebeu, no seu próprio sonho, que desse lado da fronteira o barqueiro conflagrava entre as sombras e os lugares em aberto nas montanhosas pedras. Era um sonho, muito embora aparentemente simbólico dentro da maneira de Proust pensar enquanto sonhava. Do outro lado imaginava um oposto, um corpo cujo balanço captasse as formas vivas do seu desejo. Mas desse outro lado, sem paralelo, avistara uma linha recta, um imenso espaço ligeiramente avermelhado e sem nada. Este lado, pensou para si durante o sonho, não parece ter princípio nem fim. Mas isso, essa visão, não o deixara sossegado. Ele vira no sonho como podem dois opostos nada opor entre si, e desacreditou-se da dialéctica. Levantava agora a cabeça e a luz branca do sol em cima continuava a cegar-lhe os passos. No deserto Proust perdia com frequência o sentido da razão, porém continuaria a caminhar pela realidade fora.

(fotografia de Peter Keetman, 1953)

11 julho 2013

Preciso recuperar o fogo enquanto o meu computador arranca



















Em quantas línguas se traduz
a parte do sangue que não corre
e repassa só, baixinho?
Não te vás assim, ó sangue,
sem a mim me levares à voz quente
dos entornos,
e se existir apenas um só modo de ma mostrares
eu aceito viver essa onda.

17 maio 2013

Requerimento para existir (ou a acusação de K. em Der Prozess)



Ele passa o tempo entre nostalgias
de cuja separação, entre si, vê erguer-se
aquela forma de árvore
da qual todos lhe dizem surgir o revestimento
das formas.

Ele tem igualmente uma música predilecta.
Poder-se-ia dizer que um demónio lhe come a carne
mas ele estala a mão e diz “jazz”.

Façamos de conta que o vento não lhe convém,
e então, como homem e ser,
a sua passagem é só absolutamente visual
sem quaisquer elementos de sintaxe.

Mas uma vez que ele é um homem cuja palavra
é de outrem,
o seu trajecto é motivar uma vida inteira
sem dela requerer um objecto,
e ele diz
“o meu requerimento é eterno”,
e dele apenas o eco de uma sentença
impossivelmente justa.