26 julho 2007

gabriel

quando eu tiver sessenta anos
vou ter achas incolores
descendo pelo rosto,
e uns dedos azuis
cuja longevidade
estará além dos livros
e da fé.
vou deixar de marcar encontro
com os poetas
e de escrever mais do que uma carta
à mulher que um dia já morreu.
vou ser pai e avô
a velha ama da literatura
que macia lhe limpa o pó,
perscrutando a mania
adolescente dos meus filhos
e das suas namoradas.

asas

13 julho 2007

a comuna


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Somos a comuna, o grupo restrito dos que sorvem as palavras como jovens cabritos à espera do banquete. Somos a escondida tribo da cidade de chuva, das ruelas enfeitadas de Carnaval com nomes de santos. Somos os vestígios da última prática escritural, os que metem as normas e as línguas na grande taça de vinho. Somos pares, temos tempo para por agora sermos pares. Pagámos e quisemos pagar por isso. Somos o castigo de escrever, a punição que rola pelo nosso corpo acima. E somos um só corpo na palavra do pão e do sangue, o poema que virou hóstia, a fábrica que virou janela sobre a criação. Temos agora um templo para orar, só para descalçar por dentro o que de divino nos tocou, para estripar o eco num vasto nada que nos comeu a alma. Somos a grande apoteose, a aguarela das profissões e dos ofícios que carregamos em cima, a pedra que temos de levar às costas até ao chão voltarmos. E somos ainda a moderníssima esperança da dor, a criança fugindo do escuro ao unir os estranhos laços de uma nova era. Somos o culto, a capa da revista, a primeira montra dos quiosques, a histeria repentina dos gatos, o rumor da mão sobre o invencível canto do real. E teremos tempo, teremos tempo para celebrar a reunião da esguia noite. Tão cheia de promessa. Tão concreta de alimento, tão molhada de doce vida e diferente. Somos o movimento do lânguido suor inteiro, trocando manias e instruções, pequenas migalhas do universal texto que fizemos. E somos cada uma das índias que ainda não vimos. Dizemos por fim: somos a mesa que branca se compõe em quase silêncio, a entreaberta porta de onde chegam os húmidos passos, a grande decisão da existência. Seremos para sempre o momento único, o futuro que agora é, a experiência temporária de todos os passados.
asas

03 julho 2007

foram passando as tardes


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Às quatro da tarde estivemos a olhar para o relógio, eu já cansado, tu já mais ansiosa, mas era normal. Às quatro e um quarto da tarde trocámos cartas e dissemos que as orquídeas estavam ainda mais brancas. Visitámos aquele santuário de flores às quatro e meia . E não havia século dezanove que nos pudesse contrariar as entranhas. Às cinco menos um quarto começámos a rasgar duas cartas e lágrimas ficariam para sempre gravadas no banco onde parámos. Tu pousaste os ombros sobre o meu colo e eu disse-te que estava cansado. Às cinco da tarde o resfriar do entardecer dava de si. Era quase Dezembro. Passámos seis minutos virados de frente para o jardim aberto de branco e queríamos ter falado. Mas o horizonte ia descendo escuro numas evanescentes rochas. Às cinco e meia da tarde havíamos secado ambos os cantos da boca. Tínhamos estado em silêncio, tu já meia adormecida, eu quase nervoso. E às cinco menos um quarto desta tarde ainda me torturava um bruxedo qualquer. Enroscámos os dedos num fechado nó e soubemos ver que com a noite apagámos as mãos. Às seis da tarde estivemos a olhar para uma das mais compridas vagas do infinito mar.
asas