03 março 2007

arroz de forno

eu tenho a vigília, a vigília toda das escadas que ficaram gastas com os passos dos meus avôs e das minhas avós. tenho sobre a varanda três vasos de brincos de princesa que depois de os ter nas mãos lhes tiro a cor sobre um tiro nos cabelos. ficávamos depois olhando umas alminhas num altar pequeno e descíamos o caminho de terra e de pedra correndo com as oliveiras ao lado. carregadas de azeitonas, mais tarde estivemos a abaná-las num fim de tarde de inverno. fazia frio e o kispo verde-tropa que eu trazia era do meu pai que vinha na mala do ultramar. eu tenho a vigília que é a vigia do meu solar nocturno, do que me tira o travesseiro da cama e do que me acorda com os choros dos bébés nuns metros quadrados acima dos meus. não posso guardar memória disto, porque isto não tem sol vermelho nem existência que para aqui interesse. guardo uma broa cozida num forno de pedra e todos os campos de hortelãs que depois eram metidas nas panelas de três pés. com o passar do tempo, o forno passou a ser pós-moderno, mas sempre com um vestígio de escuro e de preguiceira. agora não está lá nada. existe a chaminé que precisou de descer sobre a cozinha, porque os olhos não conseguiam ver com tanto fumo por entre as salas. o papel de parede descolava-se, mas mesmo assim sempre foi castanho e com desenhos de flores que até agora nunca soube quais. na porta, um pau grosso segura a fechadura mas já mais ninguém o segura, morreram os avôs e as avós e as aves já não têm vozes. descíamos um penedo e imaginávamos um baloiço por entre os figos. as mulheres lavavam roupa num tanque que não era comunitário, era só dali, dali e daquela seara que era a das oliveiras. o tanque por debaixo da figueira costumava ser fresco e enquanto os diques medievais davam de beber ao milho íamos debicando os cachos de uvas, quase que eram gotas de chuva em açucar e depois metiam-se num lagar que só com a adolescência podia ser pisado. quanto a hoje, a filha solteira que morreu de desgosto de amor mudou de casa. tem um apartamento, um T1 e bem no meio do sítio que lhe viu as tripas crescerem por entre as molhes de palha e os coelhos. a outra que mais tarde veio para a capital tem um rumo que desconhece avanços, mas pelo menos já não se preocupa com as oliveiras que possam não deixar cair azeitonas. mas contudo sabia bem abrir assim ao meio, com as maõs, um pêssego peludo e comê-lo de repente depois da missa. não interessava se era preciso ir à missa, tinha-se um luto escorrido pelo pescoço que devia marcar presença, não vá a vizinha do lado chamar a atenção e apontar o dedo à infame. rachei a cabeça duas vezes descendo aquelas escadas. numa das vezes estatelei os olhos no meio do comedouro dos porcos. noutra, brincava no portão e as primas afligiram-se com a perda de sentidos. não recuperei consciência desde aí. tive a ilusão de que o sabor das amoras silvestres me pudesse fazer voltar ao portão onde por entre as cerejeiras brinquei às casinhas. tudo passou. desde o jogo das lojas, até às idas ao centro comercial que entretanto abrira e que só fazia parar o trânsito aos domingos. depois, chegaram os estádios com nomes de presidentes de câmara que em directo na tv dizem palavrões. fiz a vontade ao avô que me falava da segunda guerra mundial e da fome. estive sentado na cadeira esperando por quinhentos escudos se conseguisse estar quieto num período de cinco minutos. mas agora já mais ninguém joga aos quinhentos escudos. a casa é vazia. como começou a ser aliás desde os almoços sem bancos no pátio e já ninguém aquece a água ao sol para depois se lavar. as aranhas podem todas agora viver felizes e sem medo das crianças. é possível agora ter sempre fechada a porta do lavatório. as árvores não vão ter mais pernas para subir. e as avós não vão dizer que subir às oliveiras faz mal ao período das raparigas. as videiras deixaram de ter autor.
sasasa

5 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimo texto!
Este és tu: a tua infância, as tuas memórias, o teu eu mais profundo. A tua geografia sentimental.
Descrita com uma beleza enternecedora...
Beijos

Gabriel Mário Dia disse...

deve ser boa uma beleza que (se)enternece. há memórias que são boas de trazer à tona. há memórias que se perderam com a descrença da idade. há outras que ficam rasteiras como sombras de um tempo que é difícil superar. mas há ainda outras que deixam de ser memórias para se tornarem num presente irrepreensível e irrepetível. alexandra, um beijo a-memorável

Anónimo disse...

Só me lembro dos pequenos ovos amarelos que poisavam cheios de encanto no fundo do prato da canja. Era noite de Ano Novo e o capão vinha todo empoleirado na sua coroa de papel branco muito bem recortada fazer a cerimónia de todos os presentes armados de gravatas com alfinetes de oiro a meio. O meu fato de veludo azul escuro e a camisa de bordado inglês haviam de ficar salpicados pelo desastrado baloiçar de um garfo de prata antiga e a minha mãe levar-me-ia à torneira do jardim exterior para me limpar com todo o seu amor, calmamnete. A canja sabia sempre à ternura da minha avó, a mesma com que fritava coscorões até nós adormecermos ao cheiro do azeite despejado da almotolia para acordarmos depois, quando o sol e o frio já entrassem pela janela, com a sensação de que alguém nos tinha passado um pano húmido pelo corpo, uma toalha de linho e finalmente vestido um pijama quente de flanela que já cheirava a cravo e a canela desde o Natal.
Sonhávamos literalmente com o jantar, no sul do país mais cerimonioso do que o de Natal, espreitando a vinda dos tios-avós de Cernache do Bonjardim numa charrette puxada por dois belos cavalos negros e dos de Oeiras no comboio das 17h10. Os casacos das tias raposas matreiras tinham peles à volta do pescoço e amargavam mais as nossas imagens dos coelhos mortos pelos caçadores das quintas ao lado. Os bolsos dos tios traziam o "Século" onde se lia sempre algo infantil.
Ao fundo, o Tejo rodopiava na grande curva, cheio de água, a ameaçar a cheia a qualquer hora e os moradores ribeirinhos amarravam as barcas às grandes argolas das paredes do rés-do-chão, enquanto muitos outros guardavam os seus haveres na igreja.
mMs a nossa mesa - inocência de crianças - continuava em festa, com os castiçais de cristal avermelhado bem acesos no sono dos nossos olhos. Comido o capão os grelos e as batatas assadas de querer sempre mais uma só para terminar, a renda de bordado madeirense, espalhada pela opulenta toalha da já partida visavó Leopolda deixava-se cobrir com as travessas de arroz doce, velhoses, azevias, broas de mel, pudins e outros sonhos de não caber nas barrigas.
O Novo Ano amanhecia assim, com as moedas de cinco escudos enroladas pelo avô num canudo de papel de ferro encarnado, ainda agarradas à mão fartinha de dormir, planeando futuros de contas no banco que quase nunca haveriam de render muito.
Mas os sonhos atravessavam o mundo, cheirando a erva-doce e a gengibre a aromatizar o chá de malvas quase frio nas tardes entrelaçadas de calor e glicínias do caramanchão ao fundo do quintal, lá para o Verão.
Quando os ventos passaram e passaram e insistiram em voltar a passar, a casa desapareceu, mas ficou sempre essa vontade gastronómica de ovos na canja para os filhos mais novos e de chá quase frio para os outros. E ficamos nós, menos sós que as glicínias, felizmente.

Anónimo disse...

-R

Gabriel Mário Dia disse...

temos memórias que são fios que ficam como tranças. grande rasgo que é lembrar o que foi. e foi coisa boa, pelos vistos.