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Não devíamos estar a ouvir esta música, pelo menos agora, já menos enrolando as pernas (eu) e já menos com tamanha simpatia (tu). Devíamos estar a ouvir qualquer coisa barroca, sim, devíamos estar a tentar decifrar a beleza barroca e a acreditar nos enigmas dos autores e dos pintores que gostam do goya. Já não cruzando tanto as pernas (eu) e já com o olhar menos focado (tu) podia ter-nos dado para passar os dedos no piano. Acho que me apeteceu pensar que gostava de te ver com as mãos no piano, apesar da luz da tarde não ser a mais ideal, apesar da casa não ser a minha mas a tua. O que devíamos estar agora a fazer era a cozinhar uma ceia e a imaginar se isso resultaria num texto dramático. Não saberíamos muito bem o que dizer nas falas (nas minhas) e não saberíamos ao certo se seria necessário haver falas (para ti). Por isso devíamos estar só a cozinhar e a dramatizar quase espontaneamente o cheiro a sair das panelas, a cor dos pratos a por sobre a mesa, a garrafa de vinho que devíamos abrir. Depois, como num flashback, dizíamos que a origem rural dos familiares (dos meus) é mesmo muito fundamental para interpelar certos e determinados lugares da escrita, mas que é ainda mais essencial viajar para a Europa e para o Sul e trazer daí outros espaços para os textos (para os teus). E porque precisamos de lugares devíamos estar agora num daqueles que com o tempo passaram a freguesias e onde os amigos (os teus) deixaram de ser padres para casar e onde há casas agora novas para passar os fins-de-semana (os meus). Nesses lugares não devia ser possível ouvir-se praticamente nada, só o barulho das recordações e dos fungos que com cisma (eu e tu) já quisemos tirar da pele por algum motivo. Onde há um mínimo de silêncio há também um mínimo de excesso e um mínimo de desejo que potencia tudo. Devíamos procurar dar uma espécie de potência a tudo, não ter vergonha de anteontem e gostarmos de viver a sós. Porque onde há literatura há sepulcro de qualquer coisa que precisa de ser ressuscitada, porque onde há um mínimo de literatura há avidez jovem do saber (para mim) e a celebração curiosa dos livros (para ti). Não devíamos apenas ter falado com silêncio. Não devíamos apenas ter feito dos nossos trabalhos o contrário do romance de Isolda porque o que já lá vai lá vai. Não devíamos ainda apenas estar a imaginar a translação dos corpos (do meu no teu ou o inverso) porque é ainda cedo para imaginar estas coisas. O que devíamos estar a dizer é que há um qualquer sofrimento nos olhos carregados (nos teus) que abre uma brecha de gozo na ironia infantil dos meus. Estive quase para te pedir uma sobremesa e à espera que não fosse preciso mencionar a fotografia da hannah viligger que de barroco não tem nada, é só talvez produto avant-garde, com pouco de místico. Mas já desenrolando as pernas (eu) devíamos não ter dado tanta atenção aos estudos da razão e da desrazão ou às temporadas em Londres a investigar a literacia no meio dos arquivos e de onde se ficou a saber que isso é pouco conhecido (tu). Devíamos com quase toda a certeza não estar a ouvir esta música, pelo menos agora, porque lá podíamos ter lido um verso do hölderlin com a melodia da voz (tu) e termos ficado a pensar na agradável fantasia da sua loucura (eu). Em pé devíamos ter sorrido com menos embaraço.
asas