15 novembro 2008

Carta sobre a busca da voz

Por mais do que uma vez já tive aquela visão
do precipício, é numa varanda e as estrelas já
se meteram atrás da noite, começa a amanhecer
sem a impressão de se ter dormido. Noutras
alturas desperto a meio dos sonhos
tendo a consciência plena de que me estou a lançar
ou a ser lançado enquanto o passeio raso no meu
rosto estala. Quando acordo, dá-me pena que isso
seja um sonho, embora se real fosse eu não poderia
agora pensar nessa lembrança. Atravessam-se navios
furando o estômago, lamparinas abertas
ao som do corpo largado e eu dizendo que já
escrevera sobre estes retratos da morte. Há quem
tenha o impulso contrário e se reveja nos pais
nos irmãos ou nos corações que intensamente amou:
«Reparem senhores», eu digo, «a fé nas almas é o segredo
encriptado. Só quem muito vive – ou quem desvive –
poderá um dia encarar a morte, despir-lhe as tramas
para se tornarem suas» E depois, ao mesmo tempo
que imagino aquela visão do precipício, declaro:
«Antes, não fustigávamos os textos por causa do amor,
tínhamos a sorte à nossa volta, um sítio onde não mais
do que duas pessoas conversam», e isso nem era amor
ou a elaboração mental do amor, líamos muito pouco
e talvez déssemos pouca importância aos nomes
que as coisas têm, como por exemplo a palavra
«malsã», à qual hoje me agarro para dizer doentia
e mais doente fiquei. Tu foste-me avisando para ter cuidado
com a língua, ou que eu fui crescendo à margem da língua,
que viver não tem dialecto e que à hora de falar
todos os livros têm muito pouco lugar. Quando projecto
aquela visão do precipício não é na verdade
o meu corpo a cair, porque remexo as línguas que tenho
à procura da menos pronta, da que quero ver a seguir.

E como julgo saber que sabes, tudo isso é um ardil perfeito.
Cada vez mais substituímos o olhar
pelo falar e o falar pelo escrever, e esta caligrafia que somos
oculta-nos a visão das formas, de todos os signos
que desaprendemos ver: «Serei a observação perpétua de ti»,
digo, «dos incorpóreos traços de quem não sei,
fugido às pressas de prever quem sejas. Escrevo
nos mais improváveis sítios, contornando e a fazer
que contorno os substantivos que não tenho para dizer
o que tenho, separado do tempo algures com a imagem
de uma palavra já dita, certo que se aqui a pudesse escrever
era para ser a primeira a visitar-te de dia.»