26 abril 2007

Travessa cento e um

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Não devíamos estar a ouvir esta música, pelo menos agora, já menos enrolando as pernas (eu) e já menos com tamanha simpatia (tu). Devíamos estar a ouvir qualquer coisa barroca, sim, devíamos estar a tentar decifrar a beleza barroca e a acreditar nos enigmas dos autores e dos pintores que gostam do goya. Já não cruzando tanto as pernas (eu) e já com o olhar menos focado (tu) podia ter-nos dado para passar os dedos no piano. Acho que me apeteceu pensar que gostava de te ver com as mãos no piano, apesar da luz da tarde não ser a mais ideal, apesar da casa não ser a minha mas a tua. O que devíamos estar agora a fazer era a cozinhar uma ceia e a imaginar se isso resultaria num texto dramático. Não saberíamos muito bem o que dizer nas falas (nas minhas) e não saberíamos ao certo se seria necessário haver falas (para ti). Por isso devíamos estar só a cozinhar e a dramatizar quase espontaneamente o cheiro a sair das panelas, a cor dos pratos a por sobre a mesa, a garrafa de vinho que devíamos abrir. Depois, como num flashback, dizíamos que a origem rural dos familiares (dos meus) é mesmo muito fundamental para interpelar certos e determinados lugares da escrita, mas que é ainda mais essencial viajar para a Europa e para o Sul e trazer daí outros espaços para os textos (para os teus). E porque precisamos de lugares devíamos estar agora num daqueles que com o tempo passaram a freguesias e onde os amigos (os teus) deixaram de ser padres para casar e onde há casas agora novas para passar os fins-de-semana (os meus). Nesses lugares não devia ser possível ouvir-se praticamente nada, só o barulho das recordações e dos fungos que com cisma (eu e tu) já quisemos tirar da pele por algum motivo. Onde há um mínimo de silêncio há também um mínimo de excesso e um mínimo de desejo que potencia tudo. Devíamos procurar dar uma espécie de potência a tudo, não ter vergonha de anteontem e gostarmos de viver a sós. Porque onde há literatura há sepulcro de qualquer coisa que precisa de ser ressuscitada, porque onde há um mínimo de literatura há avidez jovem do saber (para mim) e a celebração curiosa dos livros (para ti). Não devíamos apenas ter falado com silêncio. Não devíamos apenas ter feito dos nossos trabalhos o contrário do romance de Isolda porque o que já lá vai lá vai. Não devíamos ainda apenas estar a imaginar a translação dos corpos (do meu no teu ou o inverso) porque é ainda cedo para imaginar estas coisas. O que devíamos estar a dizer é que há um qualquer sofrimento nos olhos carregados (nos teus) que abre uma brecha de gozo na ironia infantil dos meus. Estive quase para te pedir uma sobremesa e à espera que não fosse preciso mencionar a fotografia da hannah viligger que de barroco não tem nada, é só talvez produto avant-garde, com pouco de místico. Mas já desenrolando as pernas (eu) devíamos não ter dado tanta atenção aos estudos da razão e da desrazão ou às temporadas em Londres a investigar a literacia no meio dos arquivos e de onde se ficou a saber que isso é pouco conhecido (tu). Devíamos com quase toda a certeza não estar a ouvir esta música, pelo menos agora, porque lá podíamos ter lido um verso do hölderlin com a melodia da voz (tu) e termos ficado a pensar na agradável fantasia da sua loucura (eu). Em pé devíamos ter sorrido com menos embaraço.
asas

20 abril 2007

O Corcunda e a Seringa

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A tua face é picotada, estou a vê-la agora mesmo ao lado da toalha de plástico sobre a mesa: tínhamos acabado de ir às uvas. Aos ombros o gigo curvou-te as costas, muitos cachos para trazer para cima, alguns debicados em cima da mesa, outros já podres. Quase ninguém gostava de separar as uvas boas das uvas podres, imaginávamos que dessem sempre bom vinho, daquele que se oferece aos primos e aos netos. Custava subir e descer a terra batida, mas isso fazias tu quase sempre com os cabelos sobre as arcadas dos olhos, ajudavam-te o silêncio, aquela tua concentração de jovem adulto viciado. Talvez por isso não falasses muito. Estarias se calhar pedrado, ressacando algum segredo, terias telefonado às escondidas dos pais para lisboa a saber onde andavam os amigos. Recordo-me de ti adolescente, abanando-se ao vento por causa dos teus dois metros de altura. Do quarto mais pequeno da casa, de onde se podia espreitar pelo vidro partido da porta, estavas tu mais as cassetes, estarias tu e o que não terias ali, tinhas saudades de uma boa cerveja ao fim da tarde ou de um charro pela noite adentro. Talvez por isso não falasses muito. Acreditávamos depois que era preciso rezar de vez em quando. Aos domingos, pelas oito, cobríamos a ponta do nariz com frio e fazíamos de conta que dormíamos para não nos levantarmos para a missa. Custava saltar para a igreja, nunca vimos nisso grande gozo. Sabia muito melhor não fazer nada, só uns desenhos talvez sobre o banco grande de madeira. Dizias assim para dentro “gostava de ir-me embora, gostava de ser mais gordo” e nós percebíamos isso a sair entre a linha da tua quase sempre fechada boca. O teu lábio de cima era como um fio de um cabelo, sopravas constantemente para um dos lados da repa que te incomodava a testa e de vez em quando puxavas a calças para cima. Eras desajeitado, mas isso não devia ter-te matado. Escolheste uma seringa a meio da madrugada para por fim ao desarranjo. Se tivesses ido ao psiquiatra dir-te-ia ele assim “o senhor sofre de peso do desarranjo, mas tem cura, não se preocupe.” Mas não foste ao psiquiatra, já saberias talvez que eras um daqueles jovens acorrentados à parede que assim ficavam para desgosto da família. E tu lias muito, sabias que era assim que antes os loucos sofriam. Quiseste outra coisa, meter a solidão toda numa mensagem de telemóvel nunca enviada, sufocar apertando o pescoço a fazer de conta, foste até à gaveta da cozinha à procura de um saco para meteres lá a cabeça, pousaste os braços sobre o sofá e misturaste o veneno à luz de um candeeiro público que te entrava pela janela. Melhor este crepúsculo, dirias tu enquanto enfurecias as veias. Nada das uvas te fez parar, nem mesmo os desenhos que fizemos sobre o banco ou as tardes de julho malhando o milho. Pensarias que o prazer havia feito as malas. Não; deves ter pensado que a frustração não é afinal uma coisa tão objectiva como os clínicos dizem. Viste uma pirâmide desfazer-se como uma miragem que se esvanece, viste irmãos de mãos dadas sobre uma barragem de correntes grossas, viste muito provavelmente toda a desrazão desta cidade onde vivias escorrendo-te por entre os dedos, como areia, como folhas picadas de um louro sem cheiro. Sentaste-te então com a noite alaranjada do candeeiro que te iluminava a sala. Sopraste para a colher que te cozeu o veneno e contaste os dias que te fizeram chegar até ali, foram alguns até, pensaste. Tiveste uma dor a subir-te pelo braço, trincavas o fino lábio agora seco e não precisaste de afastar os cabelos que também agora eram já curtos. Estou feio, dizias. Ainda não sou gordo, mas continuo feio. Meteste então tudo para dentro do sangue, melhor assim, melhor contaminar o sangue que nunca me fez saltar, que jamais conseguiu fazer-me falar e sorrir. Tinhas uma cassete dentro do leitor, parada, esperaste que a música terminasse. Lembraste-te da guitarra guardada no armário, no meio das camisolas e dos casacos. Um dia havias de ser uma estrela, digo-te eu. Lembraste-te de um passeio ao porto, junto ao douro, tinhas dito que no porto grandes estrelas surgiam de repente. Mas o porto era o norte e no norte fazia frio e nem sempre as uvas que vínhamos cá buscar eram boas. No norte estavas fora, do norte levavas muito pouco para casa. Os teus pais diziam isso várias vezes. Melhor então acabar com esta crueldade toda do norte e acabares então no meio dos gangs do sul, dos colegas de passe e de tudo isso. Não haveria volta a dar. Já tinhas carta de condução e tudo. Fazias tu a tua vida, penso eu. Imagino assim que te tivesses lembrado de nós com frio, muito aliás. O veneno que tomaste foi para te aquecer a frágil carcaça que ainda vagueava em ti. E quando morreste não soubemos explicar porque razão terias tu morrido, preferimos dizer uns aos outros que estavas doente. Mas não era verdade, não era. Não participaste no que viveste, haverias percebido desde muito cedo que tinhas já construído um vício de vida e que isso era de tua autoria. Daí sim a doença, mas não doença doente. Estiveste para além do que é da ordem do perceptível, morreste e pronto. Tu estarias pronto para isso. E quiseste fazer de conta que até então vivias, nem que fosse por entre os gigos de uvas que em silêncio trouxeste para cima, para a nossa casa. Deixaste mas é pouco testemunho e é por isso que as pessoas choram por dentro quando te lembram. És demasiado jovem, disse eu, quando espetaste a seringa.
asas

13 abril 2007

(a gata)

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a gata mia
está muito preocupada
viu alguma coisa

que eu não vi

tem os olhos bem abertos
de luzes pretas lá dentro
e fareja nos cantos

coisa que eu não vi

estica-se em pé
até nervosa se põe
e simétrica pára

em algo que eu não vi

resolve escutar
ir para longe e parar
fazer de conta que já sabe

tudo aquilo que eu não vi

dá três longos passos
e vagarosos também
é capaz de se sentar

e espera ver o que não viu.

asas
(Imagem "Experiência do lugar", por Helena Almeida)

10 abril 2007

(despedidas)

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esta semana vais fazer as malas
e apanhar o avião,

e nas despedidas

não dirás adeus

(porquê?)

já fizeste os cálculos todos:
são realmente aborrecidas

e depois,
vai ser viagem rápida
nada de ir trabalhar para fora

(ainda bem)

é que há quem parta para áfrica
e não deixe sequer
um bilhete para os amantes,

para por no guarda-jóias ou assim

(sempre ajuda)

porque nós asasasasaasque ficamos
iremos ver as notícias ao café,

só para deixar passar as tardes

pois cansámo-nos de esperar
e de vestir roupa nova
para quase ninguém ver.

asas

09 abril 2007

granitos


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estivemos na casa ontem
(mas)
pela primeira vez, à procura

talvez das coisas que mudaram
ou dos trilhos no meio da erva rasteira,
por baixo das pedras

“ainda há sanfonas a sair do granito”,
veio-me dizer

e era verdade,
tal e qual as manhãs inundadas de frio
e de pássaros pequenos,

fugindo do vale lá longe
“meio queimado”, lamentei,
e de umas quantas videiras secas
que nem pela fresca
eram verdes.

asas

06 abril 2007

(juntam-se as nuvens)

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se esta nuvem que eu vejo
fosse um anjo

um super-homem anjo

ou então uma libelinha
a mais elegante flauta

pouco clara, estranha até

no seu eco
eu havia de acreditar.

as

04 abril 2007

(poemas)


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ontem sonhei com os meus poemas –
eram penas –

rodavam, luziam
planavam no ar

bem no sítio de uma fonte,

como cântaros à pinha
em soluços

mas eram poucos, sempre poucos.

asas

02 abril 2007

(xxx)

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sa
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as
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qwas
desenterra-me agoraasasasasasagora mesmo

não te assustes
as minhas mãos ainda são de carne,
podem ainda tocar-te

puxar-te,

és a etérea pérola do meu desgaste,
anda lá, não vês como suplico

como esgadanho a terra para te tocar?
vou beijar-te inteiraasasasasase desta vez
não irei para o estrangeiro,

estou farto de sê-lo, tu sabes

de carregar comigo este casaco sem bolso
esta lápide sem enterro
ou este bosque sem bruxas,

vem asasasasasanão esperes,

separa cada grão bem devagarinho
pede-me para casar quando amanhecer
sim, junto aos amarelos pássarosasasasasasaestou aqui,

já tenho uma casa para vivermos.

asas